domingo, 16 de dezembro de 2012

IR “LÁ”, CRIAR UM LUGAR, VIVER UMA VIDA, ENSINAR UMA HISTÓRIA Otávio Velho

O outono do antropólogo. Otávio Velho. In: http://www.sitiodarosadosventos.com.br/antropologo2b.html IR “LÁ”, CRIAR UM LUGAR, VIVER UMA VIDA, ENSINAR UMA HISTÓRIA Algumas idéias em rascunho sobre os imaginários do “interior” O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a for a e dentro, eles dizem. Fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos. O senhor sabe, pão ou pães é questão de opiniães … O sertão está por toda a parte. João Guimarães Rosa momentos de Grande Sertão, Veredas da beira do mar ao interior Nasci na beira do mar. Nasci, imaginem, em Copacabana, no “posto dois-e-meio”, pois era assim que se assinalavam os lugares de nascer e de viver, entre os seis postos da praia, ao longo da Avenida Atlântica. Tal como tantos meninos do “eu tempo”, fui dessas crianças acostumadas ao asfalto e à areia do mar e não era difícil passar de um para a outra, quase todos os dias. Tal como os “da minha turma”, aprendi mais ou menos a andar em casa e, não muito depois, a nadar nas beiras da praia. Ainda não haviam trazido de longe o surfe. Mas apreendíamos cedo a navegar em pequenas “tábuas de jacaré”, desvendando junto com as primeiras letras da escola os segredos das ondas do mar do Rio de Janeiro. Nunca fui um especialista em “pegar jacaré”, mas também nunca fui propriamente um “ruim de serviço” nesses ofícios de nossas manhãs de sol. No entanto, curioso que possa ser, os meus sonhos de menino e de adolescente, recordados hoje, na beira do outono da vida, não são tanto os de Copacabana, das praias e do mar azul e verde, azul e infinito, para além do Farol da Ilha Rasa, cujas luzes de três brilhos foram por anos uma das maravilhas de minha infância. Minhas recordações mais vivas sã ode outros lugares, menos marinhos, mais interiores. Sim, pois elas são de alguns lugares dos meus primeiros “interiores”. Pois para quem viveu como eu, na beira do litoral, ele acaba sendo um território de onde se é, ou até onde se chega. Mas o interior, ao contrário, é sempre um misterioso lugar até onde se vai, às vezes para voltar, outras vezes, para nunca mais. Aprendi mais tarde imaginar que isso acontece com todo o mundo (a menos que você seja um nativo do “interior” e um dia tenha chegado “ao mar”). E aos poucos aprendi a pensar que esta seria uma idéia verdadeira também no imaginário das culturas que existem a meio caminho entre um cenário e o outro. Meus primeiros “interiores” foram próximos. Um pequeno sítio no “pé da serra”, entre o Rio de Janeiro e Petrópolis, algumas raras cenas quase apagadas de Terezópolis – onde anos depois eu viria a praticar algumas das escaladas mais inesquecíveis em minha vida – e, mais do que tudo, Itatiaia, entre a estrada que liga o Rio a São Paulo e as montanhas mais altas da Serra da Mantiqueira. Este foi um primeiro “mundo do interior” ainda regido por uma visão de campo vista desde a cidade. Pois os lugares eram mais propriamente turísticos do que rurais e eu precisei esperar mais alguns anos para conhecer de perto a “gente da roça” dos sertões próximos de Minas Gerais e, mais tarde, de Goiás. Pois foi quando eu já era um adolescente que me levaram pela primeira vez ao Sul de Minas Gerais. Ali visitei fazendas e sítios com um tio querido, irmão de minha mãe, agrônomo. Então eu vi pela primeira vez o “interior do Brasil” sem os disfarces com que a vocação do turismo reveste as pessoas e os lugares, com o desejo de torná-los absolutamente peculiares, acaba tornado-as todos mais ou menos iguais. Anos mais tarde, já nos sessenta e logo após o Golpe Militar eu viajei pela primeira vez ao Planalto Central. Fui. Também por uma primeira vez, a trabalho, como um emissário do Movimento de Educação de Base. Em uma semana vi e vivi mais do “interior camponês” do que conheceram antes em toda a minha vida até então. Em uma mesma tarde noite ouvi e vi representarem diante de nós um “arremedo” de Folia de Santos Reis e um outro, de “traição” (dita também “treição” ) de um mutirão entre lavradores de arroz, milho e feijão. Devo Ter ficado espantado, encantado. Pois ano e meio depois vim a casa com “moça do lugar” e a viver entre Brasília e Goiás durante 9 anos, até quando vim de mudança para Campinas. Hoje em dia divido as minhas semanas entre esta cidade, o Sul de Minas, Goiás, para onde tenho voltado todos os meses em nome de um retorno – 35 anos depois – à Universidade Federal de Goiás – Piracicaba, onde inicio um trabalho junto ao Departamento de Ciências Florestais da ESALQ/USP e outros cantos e recantos de vários interiores e raras beiras de mar. Pois mesmo ao Rio de Janeiro não retorno mais do que uma ou duas vezes a cada ano. Desde que saí de minha cidade natal vivi em 12 outras, aqui no Brasil e um pouco mais ao Norte e a Leste. Mas nunca mais em alguma cidade do litoral. Posso ser, portanto, depois de mais de 34 anos, apontado como uma legítima assumida vocação “de interior”. Existe mesmo entre nós uma expressão qualificadora: “interiorano”. Pois eu que resolvi um dia – cedo e tarde em minha vida – sair da cidade litorânea para outras, sempre mais a oeste, mais no interior, quero me reconhecer aqui como isto: “um alguém do interior”. Alguém que saiu e foi … e chegou “lá”. Interior, interiores, uma primeira aproximação Mas onde é este “lá”? Nunca mais esqueci o elogio que um professor da PUC de São Paulo me disse em algum dia de março de 1976, quando nos encontramos e eu comuniquei a ele que havia me transferido da Universidade Federal de Goiás para a UNICAMP e de Goiânia para Campinas. Ele me ouviu e respondeu: “uma boa escolha, das cidades do interior Campinas é a melhor”. Ora, para quem como eu estava acostumado a imaginar o “interior” como qualquer território muito longe da beira do mar e muito próximo das lonjuras sem-fim dos sertões de João Guimarães Rosa, a imagem me pareceu estranha. Mas em pouco tempo aprendi que ela era real. Afinal, para o senso comum e não tão distante dos documentos oficiais, o Estado de São Paulo possui uma capital pensada como um centro absoluto para onde tudo converge; uma região de cidades e de espaços naturais “do litoral”, de que Santos é a grande metrópole; e um “interior”, onde cabe tudo o que não está na beira-do-mar e nem dentro ou, no limite, ao redor da “Grande São Paulo”. Campinas, metrópole interiorana, era a “capital do primeiro Oeste Paulista”, após a vertiginosa expansão do café. Da mesma maneira como Ribeirão Preto veio a ser, anos mais tarde, a “capital do segundo Oeste Paulista”. Duas imagens do passado fariam um bom sentido aqui. A primeira. No caso de São Paulo, há uma curiosa inversão do locus natural, social e simbólico do sertão. Por algum tempo ele acompanha uma tendência nacional, e se localiza a Oeste da Costa do País, nas lonjuras mais além da Serra do Mar e da Serra da Mantiqueira. O sertão são imensidões de terras vistas como “vazias e inóspitas”, já precariamente “conquistadas” ou “a conquistar”, a Oeste de Campinas e em direção a Minas Gerais, a Goiás e a Mato Grosso. Mais tarde a direção do sertão em São Paulo se inverte, ela passa a denotar as terras não tão distantes da própria São Paulo, dominadas ainda pela Mata Atlântica e tomadas a Leste da capital, entre a Serra do Mar e o Litoral de São Paulo[1]. Quando estive por cerca de cinco anos realizando pesquisas de campo na região do Alto Paraíba em São Paulo, entre a Serra do Mar e o Litoral, no município de São Luís do Paraitinga, tanto na cidade quanto no distrito de Catuçaba (sede de minha pesquisa) e nos bairros rurais, as pessoas apontavam os ermos das florestas da Serra do Mar como “o sertão”. Nomes como “Sertão do Paraitinga” ou “Sertão do Palmital” eram qualificadores comuns[2]. A segunda. Certa feita vi no Instituto Sócioambiental, em São Paulo, uma cópia do que me foi apresentado como o “primeiro atlas brasileiro”. Era uma cópia de um livro publicado durante a gestão imperial de Pedro II e, no mapa da Província de São Paulo estampava cidades e vilas até mais ou menos Araraquara. Mais além dela havia um grande vazio de nomes e referências, acompanhado da seguinte informação: “território dos gentios bravios”. Lembro que vária música sertanejas, não tão antigas assim, relembram ainda entre os seus versos as “batalhas” travadas pelos sertanejos pioneiros na “conquista dos interiores” de São Paulo e os “bugres”. A conhecida música “o Sertão do Laranjinha” é um bom exemplo. A um olhar voltado ao passado, uma quase “civilização caipira” recobre quase todo o interior de São Paulo, de Minas Gerais e do Paraná, para ficarmos entre estados próximos. Maria Isaura Pereira de Queiroz a vê por: … todo o litoral paulista (onde o caiçara é sempre um caipira); o Vale do Paraíba, as serras da Mantiqueira, de Quebra Cangalha, do Mar, de Paranapiacaba; o planalto paulista; a zona bragantina; a "depressão periférica paulista"” isto é, a zona de transição entre os solos arqueanos e os solos paleozóicos, principalmente ao longo do rio Tietê (englobando a zona de Piracicaba, dos Campos Gerais etc), a zona do antigo “Caminho do Mato”, que levava ao Sul do país e por onde vinham as tropas de muares para serem vendidas na feira de Sorocaba; o planalto de Franca, caminho para as minas de Goiás e Mato Grosso[3]. Vistos desde a cidade e o litoral, os povoadores pioneiros dos “sertões de dentro”, dos múltiplos “interiores” do Brasil e, sobretudo, do Sudeste e Sul do País, ademais de carregarem toda a carga desqualificadora para a qual contribuíram, inclusive, viajantes como Saint-Hilaire, eram também uniformizados quanto às suas variações culturais e à importante variedade de seus modos de vida, inclusive no que eles têm a ver com alternativas de ocupação de territórios e de apropriação de recursos do meio ambiente. Ao mesmo tempo aventureiros, atrasados e ignorantes, os povoadores “caipiras”, ou os seus vizinhos próximos de Norte a Sul do interior do País, eram em geral vistos com um olhar de desconfiança. E este olhar desconfiado levou tempo para ser revisto. E nunca o foi inteiramente. Ao contrário do “Litoral”, lugar aberto até onde se chega, aonde se vai, de onde se é, tudo o que é o “Interior” sugere o “sair e ir para”, o aventurar-se a”, o “conquistar”, “desbravar”. Conhecemos bem as oposições coloniais brasileiras entre uma civilização litorânea, sede do poder, da religião legítima, da vida erudita, logo, civilizada como um bom espelho da Metrópole do outro lado do mar, e o interior dos “sertões de dentro”, territórios do primitivo e do popular; terras de conquista; lugares vistos como “vazios”, porque não povoados ainda com os emissários do poder e do então incipiente capital mercantil. A menos que estes lugares “de dentro” ponham à mostra os objetos da maior cobiça entre os civilizados: o ouro e o diamante. Então o interior se abre a uma efêmera civilização trazida, entre mãos de escravos e sedas dos senhores, do Litoral: Ouro Preto, Cuiabá, Diamantina, Vila Boa de Goiás. Convivemos, entre as nossas conversas de bar e as aulas das escolas, com uma visão ainda muito pobre a respeito dos cenários de natureza e de vida social do “interior”. E isto vale tanto para os “sertões” e os “gerais” de Goiás, da Bahia e de Minas Gerais, quanto para os “campos gerais” dos interiores do Paraná. Ao contrário do que a própria realidade sugerida pelos estudos de história, de geografia, de sociologia e de antropologia, muitas vezes temos ainda a tendência a imaginar ou a conceber as civilizações litorâneas como os lugares da multiplicidade étnica e da polissemia de e entre culturas. O seu oposto, isto é, o “mundo do interior”, seria a variedade monótona dos territórios das uniformes ou pouco variantes culturas “primitivas”, “rurais”, “rústicas”, “caipiras” e, no limite, “camponesas”. Se algum dia foi assim, há muito tempo não é mais assim. No Rio Claro, livro aqui já citado, Warren Dean lembra que na conquista dos territórios do interior de São Paulo, as frentes expansionistas dos primeiros senhores das novas terras interpunham entre elas e os “selvagens bravios” franjas de lavradores caboclos, os que viriam a ser os primeiros “caipiras” dos sertões a Oeste. Pouco tempo após a consolidação de terras roubadas aos indígenas para se transformarem em terras de monocultura mercantil ou em pequenos rendados de terras de sítios de policultura camponesa, já todo um interior do País era entrecortado, conflituado e habitado por: a) indígenas “bravios”, isto é, povos tribais ainda não submetidos ao colonizador e capazes de garantir em um território original ou apropriado posteriormente um modo d vida peculiar; b) indígenas “reduzidos” ou “aldeados”, “domesticados” ou “civilizados” (no que está incluído o haverem sido “convertidos” ao cristianismo católico, no mais das vezes), seja como indivíduos ou famílias isoladas em convivência direta com os senhores do mundo dos brancos, seja como aldeias e até mesmo tribos inteiras (ou o que sobrou delas) reunidos em “reduções” religiosas ou em aldeamentos da coroa portuguesa; c) indivíduos e grupos sociais representados por diferentes tipos de mestiçagem entre os colonizadores brancos e segmentos de povos indígenas, incorporados aos arraiais ou às cidades dos sertões, ou esparramados pelos territórios ainda livres ou já submetidos à lei das fazendas; d) indivíduos, famílias e grupos sociais de africanos ou de afrodescendentes reduzidos á escravidão e incorporados ao trabalho servil das fazendas, ao das áreas de mineração ou, em menor escala, aos serviços domésticos das cidades; e) comunidades de negros quilombolas ou de negros ex-escravos libertados e donos comunitários de terras doadas por algum ex-senhor[4]; f) indivíduos e famílias de descendentes mestiços de uniões entre negros escravos ou livres e brancos[5]; g) lavradores brancos, livres e, via de regra, pobres, como trabalhadores assalariados, trabalhadores parceiros, arrendatários (mais raros), meeiros, pequenos proprietários sitiantes, “biscateiros” e “cavuqueiros”, moradores de fazendas, de sítios, de povoados (vilas, freguesias, arraiais, patrimônios, currutelas, bairros rurais, aldeias - em geral quando antes foram aldeamentos indígenas - etc) ou nas cidades interioranas[6]; h) comunidades de colonos e, mais adiante, de pequenos e médios proprietários sitiantes estrangeiros (italianos, alemães, japoneses poloneses, ucranianos, russos, suíços, letões, espanhóis e, em menor escala, para o caso do interior rural, portugueses) chegados ao País entre meados e fins do século XII e habitantes, em sua maioria, de regiões interioranas do Sul do País, de São Paulo, do Espírito Santo e, em menor proporções, de outros territórios do interior do País, inclusive da Amazônia, com a chegada de pequenas levas tardias de imigrantes orientais; i) senhores donos de fazendas e de escravos e, mais tarde, de brancos pobres e mesmo de trabalhadores rurais estrangeiros; j) habitantes brancos, pobres, ricos e intermediários, das cidades, entre agentes do poder de estado, profissionais de diversas categorias de artes e ofícios e trabalhadores braçais. O mundo rural do interior parece à distância incorporar muito poucas alternativas de especialização de trabalho profissional. Afinal, em um universo agropastoril dividido entre agricultores e criadores, o que mais pode haver? Nada mais ilusório. Lembro-me de que há muitos anos andei folheando um manual editado pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Ele inventariava as diferentes profissões e ocupações típicas do mundo rural brasileiro. Ora, entre o “abelheiro” e o “zagaeiro”, este quase-dicionário listava mais de duzentas ocupações profissionais possíveis. Isto significa uma diversidade densa de ofícios e de corpus de saberes de uma tecnologias e de ciências propriamente camponesas de uma desconhecida e desmesurada riqueza. Entre residentes fixos, ocupados com os ofícios do criatório e/ou da agricultura e os “oficiais” itinerantes, os mundos culturais do interior do País colocam quotidianamente em ação uma polissemia de modos culturais de realização de trabalhos produtivos, sociais e simbólicos raramente encontrados até mesmo em estudos especializados sobre sociedades e culturas camponesas do interior do Brasil. Acho que este procedimento pode ser mais realista do que aqueles que tomam as dimensões mais propriamente das culturas tradicionais do interior do País como um parâmetro de qualificação de seus modos de vida e de suas visões de mundo. Acredito também que isto que se passa no domínio direto do exercício profissional de atividades associadas ao trabalho agropastoril, de mineração ou de outras modalidades de estrativismo, vale de igual maneira para outro campos e domínios da vida cultural interiorana. Vale para a complexidade dos sistemas tradicionais de organização e de significação das relações sociais, a começar pelas crenças, pelas gramáticas e pelas regras sociais do parentesco. Vale para toda a experiência, hoje tão mais complexa e dinamicamente diferenciada da vida religiosa. Vale para a criação de alternativas de comunicação com as culturas das/nas cidades. Estamos acostumados a pensar as culturas rurais do Brasil como algo uniforme (regido pela não variação entre padrões) , tradicional (regido pela não inovação) e rústico (regido por um princípio elementar de criação, se comparada com tradições culturais urbanas e eruditas). Apenas em termos muito restritos esta visão pode ser verdadeira. Na verdade, mesmo em uma região geográfica restrita, como o interior de São Paulo ou o Sul de Minas Gerais, o que se dá a ver é uma extraordinária variedade de padrões de criação cultural. Uma variação de estilos e de alternativas de padrões de crenças, de culinárias, de tecnologias patrimoniais, de rituais e de celebrações religiosas ou profanas, de outras criações artísticas entre a música, a poesia e até mesmo formas dramáticas de representação, como numa “embaixada de congada”, numa “chegada de folia de santos reis” etc. Uma mesma “cultura caipira”, uma mesma “cultura camponesa” abriga variedades de expressão que se entrecruzam, que se fertilizam e que provocam transformações de parte a parte. Uma mesma pequena cidade e o seu entorno de bairros rurais e de sítios e de fazendas pode abrigar criações de culturas negras-camponesas, de culturas-brancas de tradição européia e, mais do que tudo, de experiência de criação cultural híbrida. E não é apenas esta variedade de formas de presença humana através de diferentes origens e combinações étnicas, e através de diferentes criações de culturas interioranas o que nos deve chamar a atenção. Um olhar entre a história do cotidiano e a geografia dos modos de conquista e de inserção social em cenários naturais, deve lidar com uma diversificada multiplicidade de criação social de modos de vida a partir de alternativas de ocupação de espaços naturais e de sua transformação em um lugar social de um modo de vida. Na seqüência do parágrafo anterior de algum modo antecipo isto, ao listar os diversos cenários de relações sociedade-ambiente. Ali estão as cidades grandes, médias e pequenas, divididas entre os pontos polares representados pelas comunidades culturais “paradas no tempo” e, no polo oposto, as comunidades francamente modernizadas. Ali estão as redes e as teias de presenças humanas e de relacionamentos que ora aproximam ora afastam aldeias de povos indígenas, “remanescentes de quilombos”, arraiais e povoados de brancos, negros e mestiços (também de indígenas, principalmente na Amazônia). Ali está a variação das formas de ocupação propriamente agropastoris, mas também as mineradoras ou dedicadas a outras alternativas de extrativismo: as terras de sitiantes tradicionais; as de produtores “farmer”, modernizados; as fazendas ainda abertas à presença de “moradores”, de “parceiros” e de “meeiros” pobres; as grandes e médias propriedades rurais tecnificadas e quase vazias de pessoas, dedicadas ao criatório de gado ou à monocultura da cana, da soja, do sorgo e de outros produtos de valor de mercado nacional (cana) ou internacional (todos os outros). Essas diferenças, já moderadamente presentes no passado do interior de amplas áreas do Brasil, tornaram-se bastante mais marcadas nos dias de hoje. Tanto nas florestas do Acre quanto em regiões interioranas próximas a cidades metrópole, como o Rio de janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, etnias, culturas e modos de vida bastante peculiares se avizinham e convivem, entre momentos de conflito e tempos de alianças. Sabemos que apenas em alguns últimos bolsões uma antiga cultura caipira, tal como descrita por Cornélio Pires ou por Antônio Cândido. E as próprias transformações aceleradas nestes últimos anos, na passagem da música caipira para a sertaneja e desta para uma música para-sertaneja, country, ou o que seja, que invade com a maior parte dos horários das emissoras de rádio mais ouvidas inclusive na periferia das grandes cidades, tanto quanto praticamente todos os tempos dados à música nas “feiras de pecuária” e em festivais semelhantes, seria uma boa imagem do que se passa em todo o interior do Brasil. O interior dado a quem chega Quero fazer aqui um exercício do olhar um pouco diferente de tudo o que tenho visto e lido. De tudo o que eu mesmo tenho pensado, como um antropólogo interessado no estudo de culturas camponesas. Ao invés de aplicar uma espécie de “sociologia comparativa” dos estilos de vida e dos padrões de ocupação territorial através de alternativas diferenciais de trabalho produtivo e de criação de tipos de culturas interioranas, quero responder à seguinte pergunta: que tipos de cenários culturais são dados a quem chega e vê o mundo do “interior” do Brasil hoje em dia? Uma descrição assumidamente espontânea e muito pessoal deve ser lida aqui como um exercício em rascunho. Vejamos como. Podemos imaginar as cidades, os povoados e as unidades propriamente rurais de vida e de trabalho como campos sociais que ocupam territórios, que transformam e re-tranformam espaços-cenários da natureza em lugares-contextos da cultura, ao mesmo tempo em que operam simbolicamente atribuindo sentidos e sistemas de preceitos a respeito de relacionamentos do tipo cultura-natureza, sociedade-ambiente e, claro, a respeito das diversas modalidades de reciprocidades entre pessoas e pessoas, entre pessoas e grupos sociais, entre grupos sociais e a própria sociedade. Os processos de trocas e os conteúdos de sentidos e de significados envolvidos nestas relações múltiplas e diferenciadamente interconectadas geram atributos do que quero chamar aqui uma tendência cultural de uma comunidade interiorana, de uma cidade de porte médio a uma configuração de unidades rurais de vida e de produção agropastoril á volta de um bairro rural ou de um conjunto articulado de assentamentos da Reforma Agrária. Eis como eu antecipo uma classificação destas vocações culturais. Uma tendência tradição. Ela recobre as unidades de vida interiorana regidas por uma motivação à preservação dos estilos de cultura e dos modos sociais da vida quotidiana tão próximas quanto possível dos padrões reconhecidos como originais, como: “era assim que os nossos antepassados faziam”. Mas, atenção! Esta tendência tradição tem sido com freqüência intencionada por dois lugares de culturas interioranas bem diferentes. Um deles é o lugar das culturas patrimoniais propriamente ditas. Pequenas comunidades rurais, não raro, cidades mesmo onde, “de dentro para fora” prevalece toda uma vocação á o de valores e costumes tradicionais. Um apego do desejo tornado modo cultural de ser e de viver cujos valores essenciais aparecem centrados sobre a reiteração de modelos arcaicos às vezes concentrados sobre uma esfera da vida social, como a experiência religiosa. Às vezes capazes de abarcarem até mesmo o todo de uma cultura e suas realização em um modo de vida social[7]. Em outra direção um mesmo apelo interiorano ao “típico” e ao “tradicional” deriva de uma opção intencionalmente vocacionada ao turismo e a atividades culturais incentivadas por ele e seus derivados. É quando toda uma cidade se volta, como uma ação não raro dirigida ou incentivada pelo poder público municipal, a um “retorno programado” a algumas tradições visíveis e negociáveis, postas na vitrine da vida quotidiana. Uma tendência-modernização quase paralela, por oposição, à primeira tendência. A região de interior, o município, a cidade ou toda uma área rural opta – ou é forçada a isto por fatores externos não-controláveis - por um caminho de modernização em todos os planos das atividades socioculturais básicas, a começar pela opção de uma modernização das atividades econômicas do contexto urbanos (empresas e fábricas) ou propriamente rural, a começar pela implantação de unidades de agroindústria moderna e francamente dirigida a uma economia de mercado. Não raro fatores conjugados, como a transferência de capital empresarial, a abertura de complexos de modernização da vida cultural, a implantação de faculdades ou mesmo de universidades particulares locais, a abertura do mercado simbólico dos serviços e bens religiosos a várias alternativas de adesão, a chegada de um número crescente de migrantes-modernizadores força uma atualização antecipada de modos de vida e de padrões de cultura. É então quando os planos e domínios mais propriamente “tradicionais” de alguma sub-cultura local (a dos negros, dos camponeses migrados para a cidade, de algum grupo étnico) ocupam espaços guetificados e tempos restritos na economia local dos bens simbólicos, não raro sendo “preservados” justamente por poderem, em uma sociedade de opção modernizadora, serem apresentados “ao do lugar” e, sobretudo”, aos “de for a”, turistas, de preferência, como uma “tradição cultural típica do nosso passado”. Entre Piracicaba, em São Paulo e Ouro Preto, em Minas Gerais, temos dois exemplos de tendências opostas. De um lado uma cidade interiorana próxima a São Paulo, ontem conhecida como um dos redutos de cultura caipira mais tradicionais do Estado e, hoje, reconhecida como um dos mais importantes polos regionais de modernização. Uma cidade e uma região onde a antiga “cultura caipira” migra da antropologia do quotidiano para a história do passado próximo e tende a ocupar, entre museus e raros dias festivos, momentos e espaços liminares na vida cultural de uma cidade que se abre a universidades de ponta, a uma agricultura de mercado (há canaviais por toda a parte) e por uma industrialização modernizada. De outro lado Ouro Preto, não menos “universitária” e também francamente industrial, mas que faz ainda e sempre de suas tradições e do peso de uma história passada presentificada na arquitetura e no todo do “ar colonial da cidade” o eixo de referência de sua própria identidade cultural[8]. Uma tendência-vitrine. Pois à falta de um nome melhor, e para não falar explicitamente de uma tendência-turismo (pois na verdade é disto que se trata), optei por este estranho qualificador. Municípios inteiros, cidades ou, no limite, pequenos nichos-naturais concentrados em distritos ou mesmo em áreas rurais e/ou naturais, definem a ênfase de uma opção cultura dirigida mais a um “dar-se a ver” e a ser visitada do que a um tornar-se produtiva ou reservar-se à sua tradicionalidade sem intenções de vitrine ou de mercado. Em tempos em que o fator-turismo tende a se tornar um forte e persistente elemento de definição de vocações regionais interioranas, vemos por toda a parte a escolha desta opção como uma orientação dos rumos “do lugar” no seu todo ou em alguns de seus cenários histórico/culturais ou propriamente naturais/ambientais. Lugares de vida e de trabalho capazes de colocar na vitrine de sua mostra ambos os elementos, concentram um apelo dirigido às tradições histórico-culturais e naturais-ambientais. Diamantina e Vila Boa de Goiás podem ser bons exemplos. Outras dirigem esta vocação assumida ao eixo história-cultura tradicional, onde se mesclam janelas abertas ao erudito (Cora Coralina e Veiga Valle em Goiás) e igualmente ao popular (poteiras e artesãos do barro e de outros ofícios na mesma Cidade de Goiás). Outras regiões ou outros municípios, em número crescente, abrem-se a tornarem prioritárias as suas alternativas de fruição da natureza, em uma das três vocações em que consigo compreendê-las por agora: a natureza-vivência, a natureza-saúde e a natureza-aventura (esportes radicais e outros mais inteligentes). A este respeito existe considerações muito interessantes e, algumas delas, muito polêmicas. Mas que este seja um assunto para um outro momento. Finalmente, uma tendência-política. Ora, o fato de ser sugerida aqui esta alternativa de escolha de sentido do destino de uma comunidade do interior do Brasil pode parecer estranha e até mesmo indevida. Mas, ei-la, evidente e, não raro, de uma grande visibilidade. De uma lado é preciso lembrar municipalidades e até mesmo regiões (como a das cidades do entorno de Porto Alegre, por exemplo) onde o prosseguimento por duas ou mesmo três gestões de governos locais de uma autoproclamada “administração popular” sob a regência de um governo popular, torna esta opção propriamente política a ênfase cultural que subordina as outras e lhes pretende dar um novo sentido. Em uma outra direção podemos lembrar as várias áreas do interior onde um trabalho militante de movimentos populares acaba por atribuir todo um também novo sentido nas relações de teor sociocultural. A presença maciça de assentamentos e de acampamentos do MST em algumas áreas regionais do Brasil e os conflitos associados às questões de posse e uso da terra, acabam por se converter em uma ênfase cultural. Uma ênfase vivida como uma conquista e um ganho irreversível, por militantes de movimentos populares, e vivida como uma aventura provisória e inconseqüente, do ponto de vista das elites locais. Uma e outras vezes tomei aqui de passagem a Cidade e o município de Goiás como um exemplo. Retorno a ele para lembrar que, assim como em contextos culturais do interior do Brasil são raras as vocações culturais isoladas e que se bastam a si mesmas por conta própria, e que em tudo e por toda a parte há muito mais misturas, hibridismos, articulações de diferentes e mudanças e inovações, assim também as tendências sugeridas aqui muitas vezes não ocorrem em “estado puro”. Antes, ao contrário, ocorrem muitas vezes combinando pares de tendências-vocações, ou opondo umas às outras. e Vila Boa de Goiás pode ser um bom modelo desta tendência articuladora de tendências. Goiás entre a Serra Dourada e o Rio Vermelho, Goiás foi uma das poucas “cidades do ouro” goianas durante 100 anos do período colonial. Foi até entrados aos do século passado, a capital do Estado de Goiás. No ano passado a população da cidade saiu às ruas para festejar, entre rojões e os archotes dos “farricocos” da Semana Santa, o haver sido elevada a “Patrimônio Cultural da Humanidade”. Uma vocação de cidade-histórica entre o meio do caminho e os fundos do Planalto Central tem sido desde então muito acentuada. Fazem pelo menos 3 anos que toda a cidade se re-arranja e prepara para o acontecimento, afinal realizado, do “patrimônio”. Mas desde há pelo menos 28 anos não apenas a cidade e o município de Goiás, mas toda uma região de treze municípios configuram uma das áreas político-culturais de maior presença ativa de movimentos populares rurais, introduzidos alguns, incentivados outros pela longa gestão de D. Tomás Baldoino, o bispo dominicano da Diocese de Goiás. Desde a demorada seqüência de enfrentamentos com a elite conservadora rural (Goiás é um dos berços do clã de latifundiários da família Caiado) e com os emissários estaduais e regionais dos governos militares, até os anos recentes, marcados por uma forte mobilização em torno à ocupação de fazendas por movimentos agrários populares, Goiás viu-se dividida entre a tradição histórica incentivada sobretudo pela elite urbana e rural conservadora e um forte apelo ao movimentos populares rurais. Hoje a cidade é, de longe e de perto, cercada por nada menos do que dezessete assentamentos rurais da Reforma Agrária. Eis um bom exemplo de um lugar cultural de vocação múltipla, entre conflitos e alianças. Dos quatro tomados aqui como base a uma reflexão classificatória, apenas a tendência à modernização não se realiza em Goiás. ________________________________________ [1] Warren Dean escreveu há anos um notável estudo sobre a conquista dos “sertões de dentro”, em seu livro Rio Claro (Brasiliense, 1977). Um outro livro recente aborda justamente a conquista e a devastação da Mata Atlântica e os sentidos e usos dados aos vários “sertões” desbravados. Recomendo com ênfase a leitura de seu livro a ferro e fogo – a história e a devastação da mata atlântica brasileira (Companhia das Letras, 2000). [2] Ver a partilha da vida (Cabral Editora, 1995). [3] Pereira de Queiroz, Maria Isaura, bairros rurais paulistas, pg. 32. [4] Também a quantidade de registros e a importância cultural deste tipo de habitante do Interior do País, praticamente presente em todos os estados da Federação, em territórios rurais e pequenas unidades de residência a que genericamente é dado o nome de “quilombo” ainda não foi reconhecida e levada em conta na proporção devida. Todo um modo de vida e toda uma variedade de culturas negras e mestiças organizada em comunidades de valor étnico apenas de alguns anos para cá tomados como objeto de um estudo mais sério e mais consistente. Lembremos que desde a última Constituição Brasileira tais “territórios de negros” são juridicamente reconhecidos e podem se tornar áreas de propriedade comunal em caráter definitivo. [5] A importância cultural de toda uma variada descendência mestiça, de mulatos e congêneres não tem sido tratada com o valor que merece, sobretudo nos estudos escolares. Tanto no litoral de cidades como Recife e Olinda, Salvador e o Rio de janeiro, quanto em cidades do interior do País, como todas as do ciclo do ouro e do diamante, até mesmo aquilo a que se poderia dar o nome de “cultura erudita” é, antes de mais nada, a obra criadora de mestiços descendentes de negros livres ou (e principalmente) escravos, e senhores brancos. A começar pelo Aleijadinho ou o Padre José Maurício Nunes Garcia e a concluir por praticamente todos os autores do notável ciclo do Barroco Mineiro. E não apenas os artistas músicos, arquitetos, pintores, escultores e poetas. Não devemos esquecer que quase todo o artesanato também erudito que povoa as igrejas, as praças públicas e as casas do Brasil Colonial e para além da Colônia, é também uma criação de mãos e de mentes negras e mestiças. Lembro-me agora de Cora Coralina, a querida poeta goiana. Um dia, na sua cidade natal, Vila Boa de Goiás, na porta de sua casa na beira do Rio Vermelho, ela me apontava as ruas de pedra da cidade, os muros, as calçadas e as igrejas e me dizia: “o que é que você vê aqui que não foi feito pelas mais dos negros e dos mestiços? Eles fizeram tudo, enquanto os brancos mandavam ou se aborreciam. Tudo o que esta cidade tem para ser mostrado como um valor de arte saiu das mãos negras e mestiças dos escravos ou dos artistas e artesãos livres”. [6] Uma sociologia devotada ao estudo de comunidades no Brasil dos anos 50 e 60 (Donald Pierson, Eduardo Galvão, Emilio Williens, Oracy Nogueira, entre tantos, sucedida por uma sociologia dos bairros rurais paulistas (Nice Leckoc (completar e corrigir), Maria Isaura Pereira de Queiroz, Lia Fukui, por uma sociologia crítica do mundo rural brasileiro (Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Luís Pereira, Maria Nazareth Wanderley, José de Souza Martins e Maria Sylvia de Carvalho Franco) e por uma antropologia do campesinato brasileiro (Otávio Alves Velho, Luís Eduardo Soares, Beatriz Alásia de Herédia, Hugo Lovisolo, Afrânio Garcia Junior, Laís Mourão, entre tantas e tantos, tem dado conta de trazer à cena de nossos diálogos toda a imensa diversidade das comunidades, das culturas e dos modos de vida de segmentos de populações rurais em praticamente todo o Brasil. [7] Sem muita fidelidade ao relato que um dia há muitos anos me foi feito pelo professor José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, quero sugerir aqui a oposição entre duas cidades vizinhas no interior de São Paulo, onde a tendência cultural predominante é, senão oposta, pelo menos bastante diferente. No município e na cidade-estância de Amparo uma pequena elite rural conservadora nunca permitiu o desenvolvimento de uma vocação turística. A cidade guarda até hoje os ares de sua própria tradicionalidade dentro de uma região fortemente modernizada. Fundada vários anos depois por pessoas “vindas de for a”, em boa medida, Serra Negra parece haver tomado desde cedo a vocação negada em Amparo. Uma cidade-estância quase que integralmente voltada ao turismo de saúde e de ambiente. [8] A mesma coisa que observei em Ouro Preto e em Diamantina, encontrei também em Campos do Jordão e em Monte Verde, distrito de Camanducaia, em Minas Gerais. Duas cidades de turismo de história e outras duas de turismo de natureza. Tão for a do alcance dos olhos de quem chega de for a, quanto possível, bairros visualmente degradados de periferia ou vilas operárias (Ouro Preto) concentra uma maioria da população produtiva da cidade. Em Monte Verde, pequenina e encantadora estância que em tudo procura assumir ares alpinos e europeus, o mesmo ônibus que primeiro deixa passageiros nas área nobres do lugar segue depois adiante e tem o seu fim-de-linha em uma pequena e pobre “vila operária”.

A arte da catira: Negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros Eduardo Magalhães Ribeiro; Flávia Maria Galizoni

• Revista Brasileira de Ciências Sociais ISSN 0102-6909 doi: 10.1590/S0102-69092007000200005 A arte da catira: Negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros The art of catira: business and reproduction of small farm families of minas gerais L'art de la catira: affaires et reproduction familiale des paysans de l'état de minas gerais Eduardo Magalhães Ribeiro; Flávia Maria Galizoni ________________________________________ RESUMO Este artigo analisa os negócios costumeiros de sitiantes de Minas Gerais, as catiras, investigando porque se empenham nessas transações, quais destinos dão aos ganhos que obtém, e como constroem sólidas redes de trocas baseadas em relações de confiança. Assim formam, aos poucos, importantes patrimônios materiais e simbólicos. Esse movimento econômico local, regido por regras próprias e articulado perifericamente aos mercados nacionais, é vital para as suas estratégias de reprodução, para gerar, conservar e ampliar os patrimônios. A lógica peculiar dessas trocas explica vários procedimentos, que geralmente são considerados pouco racionais por técnicos e pesquisadores, mas que fazem parte de muitos cálculos, levados a cabo por anos, para ampliar o pecúlio da família. Palavras-chave: Agricultura familiar; Estratégias de reprodução; Extensão rural; Reciprocidade; Minas Gerais. ________________________________________ ABSTRACT This article analyzes the usual businesses of small landholders of Minas Gerais, the so-called "catiras", investigating why they insist on these transactions, the destination given to the earnings that they obtain, and how they construct solid exchange networks based on trust relationships. Through these they steadily form important material and symbolic patrimonies. This local economic movement, governed by its own rules and peripherally articulated to national markets, is vital for their reproduction strategies, as well as to generate, conserve, and enlarge their patrimonies. The peculiar logic of those exchanges explains several procedures, which are usually considered by technicians and researchers as a little irrational, although they are part of many calculations, firmly employed for years to enlarge the families savings. Keywords: Family agriculture; Reproduction strategies; Rural extension; Minas Gerais. ________________________________________ RÉSUMÉ Cet article analyse les affaires coutumières des paysans de Minas Gerais, les catiras, en cherchant les raisons pour lesquelles ils sintéressent à ces transactions, quelle est la destination de leurs gains et comment ils construisent un réseau solide déchanges basé sur des relations de confiance. Ils ont, ainsi, peu à peu, formé des patrimoines matériels et symboliques. Ce mouvement économique local, régi par des règles propres et lié aux marchés nationaux, est vital par ses stratégies de reproduction pour produire, conserver et agrandir les patrimoines. La logique particulière de ces échanges explique plusieurs conduites qui sont généralement considérées peu rationnelles par les spécialistes et chercheurs, mais qui font partie de nombreux calculs développés au long de plusieurs années pour augmenter le capital de la famille. Mots-clés: Agriculture familiale; Stratégies de reproduction; Extension rurale; Minas Gerais. ________________________________________ Catiras Ao final do século XIX, Karl Kautsky escrevia que raros profissionais conheciam o comércio tão bem quanto os camponeses. Eles acompanhavam as flutuações dos muitos mercados em que entravam com sua produção diversificada, e a negociação com tantos vendedores e compradores gerava um conhecimento preciso, que dificilmente seria igualado por grandes produtores ou especialistas em comércio. Na literatura, João Guimarães Rosa escreveu quase o mesmo no conto Corpo fechado, em que narrava as aventuras de Manuel Fulô que, por vingança, negociara com uns ciganos dois cavalos imprestáveis como se fossem animais da melhor qualidade. Ele engordou, ensaiou e enfeitou os cavalos para fazer a barganha diante dos olhos dos moradores do arraial e mostrar que era, realmente, especial na arte da catira.1 Como esses, existem centenas de exemplos do conhecimento que sitiantes têm dos mercados e de como sabem fazer valer seus trunfos quando podem ganhar num negócio. Esse pequeno movimento de trocas, regido por normas próprias e pouco articulado aos mercados nacionais, é vital para gerar, conservar e ampliar sua renda. A lógica peculiar desses negócios explica atitudes que desconcertam técnicos e pesquisadores: para que recriar bezerros se a Cooperativa compra somente o leite? Para que criar porcos se não há produção de milho? Por que gastar em bens duráveis de consumo o apurado na migração? Essas atitudes fazem parte de estratégias bem concertadas, levadas a cabo no correr de anos, às vezes para apoiar a colocação profissional do filho, para ampliar o terreno familiar, para liberar a esposa de parte do trabalho doméstico e acrescentar uma trabalhadora parcial à lavoura. O objetivo deste artigo é investigar a lógica e o propósito dessas trocas, denominadas catiras em quase todo o estado de Minas Gerais. Analisa-se por que são tão recorrentes esses negócios garantidos por relações de confiança, em que são investidas as beiradas, que criam, aos poucos, os patrimônios materiais e simbólicos desses sitiantes. Trocas e estratégias O tema da catira surgiu de maneira periférica em diversas pesquisas de campo entre 1985 e 2004. Entrevistados abordavam o assunto entre risadas e evasivas, insistiam em reduzir sua importância e regularidade, referiam-se aos negócios como tradição, e a sua ritualidade ocultava os interesses materiais. Mas a freqüência com que o tema aparecia nas pesquisas e na prática dos entrevistados impôs sua relevância. A idéia deste artigo surgiu com a refocalização de cadernos de campo e a releitura de subtextos de autores consolidados, que revelaram a importância dessas pequenas trocas que ocupam muito do cotidiano de sitiantes. Este estudo partiu, assim, de pesquisas realizadas com outros propósitos em áreas rurais do Norte, Noroeste, Sudoeste, e, particularmente, Zona da Mata (municípios de Espera Feliz, Muriaé e, sobretudo, Miradouro), Alto Paranaíba (municípios de Rio Paranaíba, Campos Altos e São Gotardo), Mucuri e Oeste de Minas Gerais (municípios de Araújos, Moema e, principalmente, Bom Despacho). Tudo indica que nessas regiões de pecuária leiteira mais ativa existem mais catiras ou, pelo menos, são encontrados mais especialistas no assunto. Nos cerrados do Oeste mineiro, no Alto São Francisco, foram pesquisados oitenta produtores integrados à Cooperativa Agropecuária de Bom Despacho, que respondeu na década de 1990 pela maior produção leiteira do estado. Nessa região havia uma grande fragmentação das unidades de produção – com média de 28 hectares, variando entre 12 e 97 hectares –, a produção leiteira distribuía-se harmonicamente entre os grupos de áreas, incluindo as glebas menores, e o trabalho familiar dominava em todas as explorações. As entrevistas trataram de produção, terra, produtividade do rebanho, família e geração de renda. Outra parte das informações veio de entrevistas com quarenta produtores atingidos pela expropriação dos 60 mil hectares, para a implantação do Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba – Padap, que até os anos de 1990 foi a estrela do agronegócio no cerrado. Sitiantes das terras desconsertadas – a topografia acidentada das vertentes dos chapadões – explicaram como remontaram seus sistemas de produção depois do estabelecimento do Padap para se reproduzir à margem da integração agroindustrial que se constituíra em norma cultural. A terceira fonte importante de dados foi criada na pesquisa com quinze sitiantes, plantadores de café, feijão e criadores de gado, das ladeiras esconsas da Zona da Mata mineira. Neste caso, os pesquisadores permaneceram doze meses na comunidade camponesa, registrando histórias e estratégias que surgem no encontro produtivo dos homens com a terra. Mais tarde, outras pesquisas agregaram dados a essas fontes originais e, com mais alguma observação participante, a catira pôde começar a ser pensada como uma prática que ocupava um lugar definido, tornando-se objeto de consulta em textos que foram relidos para conformar um marco teórico, impreciso ainda, que se situa na fronteira difusa entre antropologia, sociologia e economia rural. A base bibliográfica deste artigo, então, veio de uma observação já clássica de Schultz (1965) sobre o tradicionalismo rural. O autor criticava a identificação, freqüente e insensata, entre pobreza e irracionalidade: a pobreza, escreveu, não levaria o agricultor a organizar sua unidade de produção de forma irracional; pelo contrário, a ameaça da escassez estimula a gestão criteriosa dos parcos bens e recursos, inclusive um planejamento rigoroso e de longo prazo que tenderia a ser eficiente no horizonte de possibilidades postos à sua disposição. Essa lição de Schultz indica que é vital compreender a lógica dessas sociedades rurais. Foi seguindo essa sugestão que tantos autores conseguiram explicar a dinâmica própria e as relações específicas que parte do meio rural mantém com a sociedade inclusiva, pois a ação econômica dos agricultores tradicionais – ressalvada a ambigüidade do conceito – tem por propósito reproduzir família e terra; ela ordena recursos culturais, humanos, materiais e naturais num conjunto de ações coerentes, denominadas estratégias de reprodução, que compreendem desde a inserção nas companhias integradoras (Santos, 1978; Lovisolo, 1989) até o planejamento do consumo familiar (Heredia, 1979; Brandão, 1981); desde o ciclo emigratório para formar patrimônio (Garcia Jr., 1989; Woortmann, 1990) até o uso regulado dos recursos naturais (Almeida, 1988; Godoy, 1998); e, ainda, a exclusão planejada de herdeiros (Moura, 1978; Galizoni, 2002) ou a incorporação das atividades não-agrícolas (Amaral, 1988; Schneider, 2001). Sempre, porém, serão estratégias marcadas pela junção de fatores disponíveis, recombinando recursos que seriam inúteis noutras sociedades rurais.2 Assim, é possível perceber que esses agricultores não mantêm apenas uma relação passiva com os mercados. Pelo contrário, produzem constantemente minúsculas estratégias de convívio, que variam de acordo com situações, regiões, condições de acesso aos recursos, cultura e economias locais. Recursos, conhecimentos e oportunidades definem um conjunto particular de alternativas, a partir das quais são construídos os arranjos específicos de negócios que cada coletividade efetivamente pode executar. As possibilidades que conformam os arranjos são, ao mesmo tempo, singulares e plurais, e as estratégias econômicas emergem de um mesmo conjunto de variáveis combinadas de maneira muito diversas. Assim, fluxos de renda podem surgir de migração sazonal, integração agroindustrial, pluriatividade, programas públicos, feiras locais ou pequenos negócios, mas sitiantes de um lugar tendem a privilegiar mais algumas atividades do que outras. As escolhas são balizadas por circunstâncias, conhecimentos e recursos – materiais, naturais, sociais e simbólicos –, que se combinam de maneiras diferentes para criar situações novas que reproduzem, renovadamente, os mesmos sujeitos. Porém, comércio, dinheiro e liquidez ocupam um lugar central nessas estratégias, mesmo quando os mercados estão em posição secundária na hierarquia de valores da sociedade rural. A lógica das relações tradicionais pode se articular aos mercados, como mostrou Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974). Investigando o comércio de café no século XIX paulista, a autora observou que o dinamismo do negócio se devia aos laços pessoais que uniam fazendeiros e comissários de café. As relações sociais de proximidade – que autorizavam ao comissário vender café sem consultar o produtor, e davam ao produtor o crédito para sacar dinheiro sem ter colhido o café – agilizavam os negócios. A confiança cimentava as relações econômicas e lastreava a circulação de mercadorias. Confiança e reciprocidade são a base dos negócios nas sociedades tradicionais, o que garante o acesso ao crédito (Santos Filho, 1957), à terra (Martins, 1981) e à rede de trocas (Garcia, 1984). A importância dos mercados é mediada pela ética camponesa (Woortmann, 1987), e os negócios são animados por relações de proximidade (Abramovay, 2004). Nessas comunidades rurais há pouca circulação monetária e nem sempre os bens são trocados por dinheiro; mais freqüentemente, as trocas se baseiam em animais, bens de valor estável e aceitação generalizada. Os animais constituem, portanto, o mealheiro, base do acúmulo e do pecúlio familiar.3 A literatura a esse respeito revela que as estratégias são formuladas para garantir a reprodução e, secundariamente, a ampliação do patrimônio; mostra também que, com base na confiança e na reciprocidade, são as circunstâncias que constroem moedas e mercados específicos. Assim, é possível compreender as catiras: pautadas por cálculos de longo prazo, cimentadas por relações sociais costumeiras, mediadas por um pecúlio vivo, formam um conjunto miúdo e contínuo de trocas de bens de pequeno valor que influem decisivamente no comércio de regiões rurais e, portanto, na sua dinâmica. Os negócios Na economia dos sitiantes de Minas Gerais, não é somente a produção agropecuária que amplia o patrimônio familiar, ou pode-se afirmar que isso raramente ocorre. Por uma série de razões – exclusão setorial política e econômica, canais precários de circulação mercantil, condição subordinada na negociação –, a produção garante o sustento, mas não a ampliação da riqueza. A lavoura de mantimentos e/ou a integração agroindustrial asseguram os alimentos; a produção de café e/ou a integração agroindustrial pagam as contas corriqueiras da família – roupas, remédios, energia etc. –, mas a expansão do patrimônio familiar vem de atividades que estão à margem da produção agropecuária regular. Na Zona da Mata, os pagamentos feitos pela indústria garantem a mantença e o custeio dos integrados da avicultura, mas seu ganhame é gerado no comércio de subprodutos, cama-de-frango e leite. Os sitiantes dessa região e, também, do Sul de Minas Gerais produzem mantimentos, pagam as contas com a venda de café, mas acumulam bens com o pequeno comércio. Nos sítios do Alto Paranaíba, o pecúlio forma-se em períodos de trabalho temporário em fazendas ou com parcerias em lavouras. No Norte e Nordeste, amealha-se com a migração sazonal; no Sudoeste e parte do Oeste, mais integrados, os sitiantes ganham com a indústria a domicílio; artesanato ou atividades urbanas costumam gerar os excedentes no Centro e no Campo das Vertentes; os produtores de leite no Oeste mineiro mantêm-se com a integração, mas fazem renda com venda de bezerro4 Em suma, nas mais diferentes regiões, os sitiantes formam seu patrimônio segundo um cálculo de longo prazo que difere de um para outro, mas perseguem, sempre, quatro metas de aquisição bem definidas: 1. Bens de uso generalizado e negociação fácil, como utensílios domésticos, eletrônicos e automóveis. 2. Animais de valor, como porcos, cavalos ou vacas. 3. Partes da herança partilhada pelos pais: lotes de cunhados de um dos esposos, ou, quando isto não é possível, terrenos urbanos. 4. Terrenos rurais de não-membros da família.5 Os meios usados para alcançar tais metas variam, mas sempre incluirão o trabalho – migração sazonal, pluriatividade e parceria, que produzem rendas fora da produção agrícola da unidade familiar –, os repasses – como aposentadorias e bolsas, que produzem rendas independentemente do esforço familiar – e, finalmente, os negócios – que no decorrer do tempo transformam em patrimônio os subprodutos e os bens periféricos amealhados. A reprodução pode ser ampliada pela terra, por criame de gado ou pelas relações de trabalho, quando, por exemplo, a parceria gera um a-mais para o parceiro-proprietário. Escolher um ou outro método depende do regime agrário e das conjunturas; a lógica, porém, sempre é a mesma, apresentada de maneira esquemática no Quadro 1. Essa estrutura de gestão dos bens e das fontes de recursos familiares foi resumida na frase definitiva de um sitiante de Miradouro, Estevão Dias: "Roça é comida, lavoura é dinheiro, gado é negócio". Ele explica, didaticamente, que a roça de mantimentos, ou lavoura branca, provê o alimento; que a venda do café (lavoura, nesse caso, deve ser sempre entendida como lavoura de café) paga as contas da casa e o custeio da produção, mas que a renda que dará forma ao patrimônio advem fatalmente dos negócios. Para os sitiantes, essas fontes não se confundem. Eles costumam diferenciar rigorosa, didática e eticamente as origens dos recursos, inclusive para avaliar a evolução do patrimônio. Mesmo pequenos acréscimos têm origem num determinado crédito, o que é evidente em frases como "este carro veio de uma panha de café", "esta égua veio na troca de uns leitões" e "este terreno aumentado veio da venda de uma ponta de gado". Assim, como o patrimônio se forma com ações independentes da produção imediata de alimentos, ele é considerado uma riqueza construída à margem, porque expande sem sacrificar o consumo familiar. E, com exceção dos recursos advindos de migrações sazonais e ocupações não-agrícolas, o crescimento da riqueza é creditado em parte à "natureza mesma das coisas", pois surge apartado da lida concreta na roça familiar. É como se fosse um capital mágico, já que o patrimônio cresce pela mediação do meio natural: a lavoura que produz seus frutos – que são antes de tudo produtos da própria terra; a terra que subordina o parceiro e acrescenta renda ao seu próprio preço – aparentemente por ser terra e não pelas relações sociais que a envolvem; o gado criado solto que aumenta em peso, bezerros e negócios. Seria apenas mágica, não fosse a interferência do cálculo humano, de um lado, e da catira, de outro: o cálculo governa a lida e rege a catira; a catira dá forma material ao recurso criado à margem da produção de mantimentos e o converte, lentamente, em patrimônio. A catira cria um fluxo de reconversão contínua que, às vezes, consome uma vida para dar forma patrimonial a um cálculo humano. É por isso que catira – ou barganha, breganha, baldroca, negócio, rolo: as denominações são muitas – é uma das instituições mais sólidas do meio rural mineiro. Trata-se da troca de animais por bens de consumo, produtos agrícolas, dinheiro ou um pouco de cada, e vice-versa. Em algumas regiões é um negócio bastante freqüente e os negociadores são extremamente dedicados; em Minas Gerais serve para dispor bens sem serventia, trocar o miúdo pelo remediado e este pelo graúdo, para encorpar, aos poucos, os bens que compõem o patrimônio familiar. Catira, então, o leitor já percebeu, não é um negócio qualquer, mas, uma troca essencial. A ritualidade, o respeito aos costumes e às culturas conformam os atos, o cenário, a coreografia e o palco onde o cálculo humano é executado. As trocas têm por base a confiança e o nome dos parceiros, são marcadas pelas histórias pessoais, carecem de muita conversa e, às vezes, de uma encenação emprestada ao jogo do truco, mesmo quando, desde o começo, todos já saibam qual será o desfecho do negócio. As catiras nascem de bases materiais já dadas: apartação de bezerro-de-ano, milho no paiol, uma bicicleta, leitões engordando, um Chevette encostado, vacas niquentas – dessas que nunca amansam, que parecem esconder no corpo uma nica, ou moeda de níquel, daí o nome. Há, sempre, o quê negociar: "Tudo dá negócio...", gostava de dizer Itamar de Mattos, criador de gado, mensageiro da Palavra, plantador de café, meio-negociante lá do Miradouro. E negócios surgem até de encontros que parecem acidentais: Ele estava nesta égua e eu ia passando com um milho para levar para os porcos. Ele falou que apreciava muito uns capadinhos. E ainda falou: "Sabe que dá prejuízo sustentar porco com milho da gente? Porco come é do nosso suor...". Aí eu senti que ele queria era negociar, mas eu não sabia direito era o que eu queria conseguir dele. E aí eu falei, falei mais é para valorizar o que é meu: "Eu fui criado com gordura de porco e nunca que acostumei com óleo". Dai começou... (José Nelson, sitiante da Zona da Mata). Então, deram-se a troca dos porcos pela égua, a parição da égua e a catira do potro, a produção das leitoas e novas, e encadeadas, séries de trocas, porque fêmeas dão vida às trocas, desde aquelas originárias, de irmãs por terra – que são a base física e genética da reprodução dos sítios –, até aquelas outras, rotineiras, que conduzem para o sítio os bichos-fêmeas e levam o sitiante à prosperidade, porque a sabedoria ensina que "é bicho que urina para trás que bota o dono para a frente". No entanto, mulheres raramente fazem catiras, que estão muito ligadas ao papel e à representação masculina.6 Os preços que correm no mercado nacional são apenas balizas para as catiras. Elas são marcadas, sobretudo, pelas peculiaridades locais e por um horizonte limitado de benefícios, de forma que se tornam um jogo onde ganham todos os que se reconhecem: os que sabem a utilidade do bem que recebem, os que adivinham o destino do produto que dispõem. Por isso esse tipo de barganha é, também, um jogo regulador do patrimônio e da fortuna – uma redistribuição, conforme definiu Mauss –, porque realoca os bens nas parcelas necessárias para cada jogador fazer seu jogo. E como, às vezes, a arte serve ao cálculo, o rito funciona como o pano que cai para ocultar o ator que esqueceu sua fala que modificaria, para melhor, o cenário: ele torce o assunto para fugir de um tema delicado, oferece um café para mudar um diálogo que não estava no roteiro que previra, começa a fazer um cigarro de palha quando a proposta recém-apresentada pelo parceiro gasta cálculo mais lento, conta um caso passado há anos – aparentemente sem propósito, mas finalizado com boa lição moral para a situação presente – no momento em que o negócio está chegando ao desenlace para aumentar a tensão do parceiro e fazê-lo aluir mais ligeiro; ou sugere, com infinita sutileza, que sabe por que o outro deseja o bem que adquire, para mostrar que domina os resultados da catira.7 Nos sítios, a troca de bens é constante, diversificada e, possivelmente, muito mais negociada do que nos grandes mercados; é regulada por uma gama variada de regras e avaliações objetivas e subjetivas. Os termos das trocas são abertos num leque tão amplo quanto a variedade de bens que se troca, porque nas catiras a necessidade e o cálculo individuais são referências muito objetivas. Lidando com tantas trocas e dominando um varejo extenso – como notava Kautsky –, os sitiantes ganham um insuspeitado conhecimento de mercados, preços e oportunidades. Mas negociar não é apenas um meio para conseguir bens materiais, serve também para confirmar laços, refazer acordos e complementar necessidades; é um meio de tornar os homens iguais, tanto porque eles se encaram olho-no-olho – e a medida do homem será dada por sua capacidade de enfrentar o outro –, como porque a circularidade das trocas tende a equilibrar os ganhos. Por isso nos sítios tudo está para negócio – "menos a mulher e os meninos", gostava de ressalvar Donizete, dos Bernardinos, da Chapada do Doce, em Moema –, se o negócio está em acordo com o cálculo. Assim, cresce a massa de bens, de estoques e animais, e sempre parece que isto vem do fato de que alguns bens e a própria terra gozam da capacidade de se valorizar sem a mediação do esforço humano. O progresso material pode ser percebido no decorrer da vida de uma família, mas nunca aparece em estatísticas porque os censos registram apenas fragmentos, fotogramas, dessas vidas, e porque o jogo redistributivo da herança sempre recoloca o filho no ponto em que o pai partira. Ao longo dos anos, os bens multiplicam-se nas mãos de quem sabe o momento certo de dispor, por exemplo, de um fusca para adquirir uma nesguinha de terra. Tudo sempre é bom para uma barganha, mas o gado bovino, conforme Totonho Alves, sitiante do Capivari dos Macedos, Bom Despacho, é o "mais principal", o melhor, mesmo, para converter bens, mercadorias e dinheiro. Solto nos pastos, rende por si: medeia negócios, é líquido, é meio de produção, aumenta, pode ser estocado, fracionado, reunido, cedido à meia e, até, alugado – uma inovação criada por alguns produtores de leite do Oeste mineiro quando querem ir passar uns dias pagando promessas no santuário católico de Aparecida do Norte, em São Paulo. Por isso os sitiantes gostam de manter parte do patrimônio em gado, que é garantia sólida na inflação alta e no juro baixo, além de ser quase-moeda, pois, na definição exata de Estevão Dias, da Fazenda Pica-pau, de Miradouro: "Gado é dinheiro andando". As reses não se enquadram muito nos padrões do mercado formal, pois o gado raramente é terminado, isto é, nunca chega às 16 arrobas convencionadas para o abate. Selecionam as fêmeas por juventude, rusticidade e habilidade materna; importa menos a produtividade leiteira. Essa cultura que envolve o rebanho territorializa sua liquidez, mas não a elimina, ou seja, há sempre um ajustamento de preço às demandas do mercado nacional, ao menos em parte. A criação é orientada para reprodução, troca e reserva de valor: Estou criando estas novilhas e esperando elas para leite. Mas elas estão para negócio, ou se apertar a gente negocia. Os garrotes também são para recria, mas se apertou a gente vende e se aparecer negócio a gente faz. Para ver: eu estava devendo meu cunhado. Ele veio, olhou um gado e ficou com ele pela dívida. Sempre tem um aperto de pasto, um aperto de dinheiro, vende um garrote para comprar um adubo de café, estamos sempre vendendo ou trocando (Ivo Almeida, sitiante do Oeste de Minas Gerais). Mas, antes de tudo, gado é um meio para adquirir terra. A terra "cria" o gado, que é trocado por mais gado, que, recriado, produz mais terra. É por isso que os ganhos da migração, as sobras da panha de café, as rendas não-agrícolas e do trabalho a-dias são convertidos em gado. A sobra, o apurado, o ganhameviram gado, que, se espera, produza mais sobras, e, por fim, mais terra: Vendi o gado e comprei a terrinha, com um sócio, e daí pra frente todo cobrinho que sai da minha mão é para comprar mais um gadinho. A gente faz é fundo [gado pior] e cabeceira [gado melhor], mas vende indiferente: quer cabeceira? Vai cabeceira! Junta um café, um mantimento que sobrou, faz mais uns bezerros. Hoje mesmo, se meu sócio der de vender a parte dele, eu desfaço desse gado, que já dá para pagar. ["E fica sem gado?"] Vou refazendo, e de um capado mais uns alqueires de arroz sai mais bezerra... ["E se ele não quiser vender?"] Se for outro caso, eu desfaço das novilhas do mesmo jeito, para botar noutra coisa mais parada, noutro terreno (Estevão Dias, sitiante da Zona da Mata de Minas Gerais). É esse cálculo demorado que o sitiante faz, avaliando as oportunidades de economizar, criar, catirar e, finalmente, adquirir terra. Quando quer partes de terras da herança comum dominada por irmão ou cunhado, o sitiante corta despesas, descobre novas receitas e catira animais para ir comprando terra aos poucos, porque quanto mais compra mais tem condição para tornar a comprar. É uma combinação de cálculo de longo prazo – que avalia disponibilidades, recursos, prazos, precisões e oportunidades –, sorte – para a boa saúde do gado e da família, para que apareçam as transações que precisa fazer –, esperteza – para reconhecer a boa oportunidade, alongar os prazos e levar a cabo trocas vantajosas sem prejudicar ninguém das proximidades – e muito trabalho – para garantir o sustento diário, fazer sobras e poder comprar mais gado. Nessa combinação, a família forma o pecúlio ao longo do tempo. Independentemente da quantidade de bens que possui, ou chega a possuir, o estilo de aquisição e as combinações que deve fazer são as mesmas. Sempre, também, ao final de um ciclo de vida o sitiante se encontra, no máximo, no ponto em que seu pai chegara: reuniu as terras que foram partilhadas entre irmãos e cunhados, criou seus filhos e partilhou entre eles o patrimônio amealhado. Aí então o ciclo recomeçaria, mas fatores externos podem mudar a situação, como vem acontecendo desde a década de 1980 com a queda brutal da natalidade, que aumentou a legítima dos herdeiros ao reduzir a partilha e reduziu o monte-mór com a diminuição da massa de trabalho-sobrante que seria estocada pela família do fim da infância ao início da idade adulta dos muitos filhos. Além disso, a universalização das aposentadorias e das pensões rurais e a quase generalização do acesso aos recursos de programas compensatórios contribuíram para inverter o padrão histórico de dependência e reprodução entre gerações e gêneros, ao tornar os idosos mais líquidos do que os adultos jovens e as mulheres mais endinheiradas do que os homens. No entanto, a lógica permanece. Com bolsas e pensões, aposentadorias e transferências, os sitiantes vão adquirindo e trocando porcos por gado, produtos por animais, animais por equipamentos, e vice-versa, e, quando é preciso, tudo por dinheiro, e novamente por gado, e finalmente por mais terra. Com efeito, o rumo das trocas não muda: machos por fêmeas, adultos por jovens, poucos por muitos, semoventes por mais parados. Nas regiões mineiras onde as trocas são mais fortes, sitiantes podem até se tornar, em definitivo ou por uns tempos, catireiros profissionais. Esses lidam a maior parte das vezes com vacas ou bezerros descartados e fazem seus negócios com prazos estabelecidos. São muito úteis porque dão um destino ao bezerro – o macho imprestável no rebanho leiteiro especializado –, à vaca de fundo e, ao mesmo tempo, um pecúlio aos sitiantes. A atividade vai ocupar muito do seu tempo: trocam ou compram pequenos lotes, às vezes refazem o gado em bons pastos para barganhar mais adiante por bens ou outro gado e muitas vezes reúnem uma bezerrada macha para negociar com invernistas que carecem de gado macho, jovem e magro para terminar e levar ao abate. Catireiros são elos ativos nessa cadeia produtiva torta que leva gado sem serventia nos sítios para a ponta da terminação ou do consumo.8 Catireiro tem que ser conhecido, ter bens próprios e sua rede de informantes; tem que saber onde existe algum gado, animal ou bem para ser barganhado e, também, onde há alguém interessado naquilo que ele tem ou que pode adquirir. Mas, sobretudo, precisa ter um bom nome: "Catireiro não prospera com embondo [logro ou embaraço]", resumia Jarico Rodrigues, do Paranaíba, ele mesmo um raro sitiante que adquiriu mais terra do que a herança paterna às custas de muito trabalho e maestria na catira.9 Os catireiros dependem desse bom nome, pois com isso podem até mesmo fazer negócio sem ter capital, na base apenas da confiança e dos prazos. Eles dizem que os prazos "dão os seus dias" – "prazo, um dia, vence...", assegura Valtervi, sitiante do Capivari dos Macedos. Mas enquanto os prazos correm por um lado, os catireiros rodeiam pelo outro lado para produzir bens ou dinheiro que seus compromissos exigem. Por isso o tempo e as informações sobre o seu mercado são essenciais: para ver um animal, saber de precisões dos outros, esperar novidades. Parece que o bom catireiro não trabalha, que tem a vida inteira à sua disposição. Gasta tempo se informando sobre preços nos mercados nacionais, sobre os apertos de dinheiro do produtor, sobre seus planos e interesses, enfim, tudo o que vale saber sobre a vida alheia. Mas finge não saber: por exemplo, vai ao sítio procurando porcos para trocar por uma bicicleta, sabendo que o sitiante tem mesmo é garrotinho com precisão de vender para pagar no mês que entra parte de um terreno que comprou. O catireiro finge ser sonso, no jogo de deixar a palavra inicial do negócio ao parceiro, que, forçado a abrir a catira, revela seu teto de cálculo e fornece o galeio – o balanço do valor –, onde o catireiro se apóia para começar a desenrolar a trama de possibilidades que carrega, já há muito, na cabeça. Catiras, dons, riquezas O negócio da catira, como a dança da catira, tem coreografia e ritmo próprios, num e noutra só aparecem os homens. Negócio e dança formam patrimônios – semoventes, materiais, simbólicos e culturais – que dão vigor e perenidade a essas sociedades rurais que se celebram e se revelam nessas suas artes. Mas o negócio é uma arte particular. Ligado à vida mesma de todo dia, funciona como um mecanismo que produz e ajusta a riqueza que, por sua vez, se expande das coisas para as famílias e das famílias para o lugar, porque os bens, ao circular, cimentam as bases que fundam a economia dessas regiões rurais. Por isso é que não deve haver assombro nem preconceito ao ver sitiantes, com catiras, dar nova forma material aos produtos da lavoura, da migração, da pluriatividade, das aposentadorias e de outros meios de aquisição de renda. Essas habilidades e costumes, porém, são recebidos com certo desrespeito por parte de técnicos e especialistas em desenvolvimento rural. Os mais puristas garantem ser inútil esse conhecimento que sitiantes têm do mercado – costuma ser dito assim mesmo, como se fosse um ente único –, uma vez que esse tipo de lógica de sobrevivência e reprodução só lhes traz prejuízos, como, por exemplo, trocar dinheiro por bens imóveis e esterilizar investimentos, barganhar uma safra por novilhas de sobre-ano e estar sempre montando e refazendo gados para, ao termo, convertê-los em bens "mais parados". Os sitiantes careceriam de cursos, de conhecer os meandros da circulação das mercadorias, dos preços e das finanças, para se tornarem, enfim, devedores prósperos e empreendedores ativos. Grande engano, pois as catiras são essenciais para a reprodução dessas famílias e dos regimes agrários. Dinamizam grandes e pequenos negócios, agilizam a circulação de bens, criam e distribuem riquezas, consolidam poupanças, expandem o patrimônio comercial ao firmar relações costumeiras de confiança que alicerçam novas e continuadas trocas entre os agentes econômicos. Criam, portanto, estabilidade na economia rural ao criar oportunidades para muitos. Isso fica evidente na força do pequeno comércio e indústria familiar ao longo da rota Centro Oeste-Triângulo Mineiro, na demorada estabilidade econômica da Zona da Mata mineira, na diversificação das atividades rurais e urbanas dos pequenos municípios do Alto Paranaíba. Nessas regiões de base agrária familiar, de boa pecuária e catira forte, dia-a-dia os sitiantes refazem seus negócios e dão fôlego às suas trajetórias tão iguais e diversas que conformam o campo do país dos mineiros. Notas 1 As categorias de uso local virão em itálico na sua primeira aparição neste artigo. 2 Para análise dessas estratégias, ver Garcia (1984), Garcia Jr. (1989), Schneider (2001) e Abramovay (2004). Um estudo clássico sobre o lugar da família na estratégia de reprodução foi realizado por Chayanov (1974). 3 A esse respeito consultar Lovisolo (1989) sobre sociedades camponesas; Teixeira da Silva (1997) sobre fazendas; Queiroz (1997) sobre o Sul do Brasil; Ribeiro (1998) sobre o Sudeste; Andrade (1986) sobre o Nordeste. Para estudos mais antigos consultar Santos Filho (1957) e mais recentes, ver Schröder (2004). Como o animal é um bem que resulta da ação combinada da natureza e do trabalho, não possui o caráter perverso e usurário da moeda. Sobre a imagem espúria do dinheiro nas sociedades camponesas, consultar Martins (1981) e Woortmann (1987). 4 Esses sitiantes produzem leite, matrizes leiteiras e recriam machos, que vendem junto com vacas de descarte; criam mais gado que seus pastos suportam e as vacas lactantes correspondem a menos de um terço dos rebanhos (Sebrae, 1996; Ufla, 1997). 5 A diferença entre o terceiro e o último tipo de aquisição é grande, pois irmãos(ãs) ou cunhados(as) tendem a vender terras com preços e prazos favorecidos, e muitas vezes os negócios são casados, isto é, vendem as suas glebas para comprar terras de outros parentes. A esse respeito, ver Moura (1978). 6 Mulheres costumam vender produtos, mas quase nunca fazem negócios como as catiras. Osório Dudu, sitiante da Vereda das Araras, no rio Acari, ao Norte, explica que "juízo de mulher [para barganhas] só dura até o meio-dia". 7 O senhor Abel, sitiante de São Gotardo, contou, por exemplo,que o vizinho avisou que "vinha catirar a charrete, preu pensar que ele queria dois garrotinhos [novilhos]; mas eu sei que ele queria mesmo é o cavalinho, porque está sem animal para puxar [transportar] leite". Barganharam o cavalinho por três arrobas de café, uma leitoa e Cr$ 1.000,00 em quarenta dias. 8 Em Bom Despacho há um lugar onde os catireiros ficam esperando negócios; essa banca de trabalho é apelidada de Catiródromo. 9 Catireiros cumprem seus acordos mesmo que isso signifique sua própria falência. Um deles, em São Gotardo, adquiriu bezerros e os vendeu para um frigorífico que faliu; vendeu a herança da esposa – o bem que lhes restara –, mas não deixou de honrar seus compromissos; pagou as dívidas e seguiu catirando com os parceiros de sempre. BIBLIOGRAFIA ABRAMOVAY, R. 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Tempo de travessia, tempo de recriação: os camponeses na caminhada Bernadete Castro Oliveira

Estudos Avançados Print version ISSN 0103-4014 Estud. av. vol.15 no.43 São Paulo Sept./Dec. 2001 doi: 10.1590/S0103-40142001000300019 DESENVOLVIMENTO RURAL Tempo de travessia, tempo de recriação: os camponeses na caminhada Bernadete Castro Oliveira "Todas as coisas têm o seu tempo e todas elas passam debaixo do céu segundo o tempo a que cada uma foi prescrito. Há tempo de nascer e tempo de morrer. Há tempo de plantar. Há tempo de arrancar o que se plantou…" (Eclesiástes; 3-1) ENQUANTO movimento social, a luta camponesa tem demonstrado, ainda que em pequena escala, a forma dinâmica das estruturas sociais, onde os sistemas de hierarquia e ordem são reativados no momento do conflito e contribuem para estabelecer um objetivo comum. Instaura-se um momento de ruptura das relações estabelecidas no interior de um grupo (ou de vários grupos), que podem assumir características diversas daquelas estruturadas em período de normalidade, adquirindo uma outra lógica que se põe pela necessidade de sobrevivência ou enfrentamento. O movimento camponês pressupõe um estado de contestação. Os ideais e as práticas contestantes são relevantes à medida em que constituem uma interpretação divergente da ordem estabelecida, ou do "novo" que desestrutura as relações sociais existentes. São comportamentos incorporados pelos indivíduos como forma de resistência, podendo se desdobrar em movimentos mais amplos, criando novas condutas que pressupõem linguagem, rituais e práticas inovadoras (muitas vezes no sentido de reinvenção), elaborando um referencial utópico no qual se protegem do presente e se inserem no futuro. As comunidades remanescentes de quilombo no Vale do Ribeira talvez sejam um bom exemplo. Sua luta pela terra validando o direito de posse, revestiu-se como uma luta de caráter étnico pelo reconhecimento da descendência das populações negras que povoaram aquelas áreas desde o século XVII, revelando assim uma forma de apropriação da terra que foge à lógica mercantil da compra e venda. Woortmann (1997: 80) assinala "que o parentesco legitima e codifica a propriedade no plano das regras ideais, associando a ele valores, como característica permanente da cultura e, se é preciso `inventar' uma ancestralidade, não estaria expressando uma rejeição ideológica da aquisição da terra por compra?" O direito de posse aparece tendo como substrato uma terra que se define e se constitui a partir da morada e cultivo. A morada (casa-domicílio-família) é a base da organização do trabalho e da produção, e efetiva através dela, o direito à terra. Tanto que no caso da conquista da terra o marco primeiro das ocupações feitas pelo MST é o "barraco", com a família, para transfigurar a "terra de negócio" em "terra de morada" . Nesse sentido, a terra de cultivo e morada se opõe às relações de mercado enquanto estrutura básica, oferecendo resistência à lógica capitalista da acumulação. Tal aspecto não significa que, enquanto unidade de produção/consumo, esteja alheia às trocas mercantis, mas que as desenvolve a partir das necessidades e perspectivas do grupo doméstico. Mediante essa negação do valor de mercado, mostra a existência de uma racionalidade que se estabelece a partir de uma sociabilidade, de um direito, de uma moral, que negam princípios capitalistas de produtividade e de rentabilidade que valorizam o capital. Ao contrário, o cálculo econômico no sentido de um empreendimento familiar busca a valorização do trabalho como categoria estrutural das relações de produção. Decorrente disso, os termos que definem uma agricultura camponesa têm de ser discutidos não a partir de uma economia de mercado, como normalmente é feito, mas buscando-se sua definição a partir de características específicas no interior dessas unidades, algo que se situa mais na esfera da autonomia da produção do que na dependência da circulação. Unidades que se diferenciam, no tempo e no espaço, de leis gerais de relações de produção determinantes ou globais, muitas vezes como produtos antitéticos do desenvolvimento geral da sociedade. De modo geral, na concepção camponesa há sempre referências à terra como dom, da natureza ou de Deus. Essas referências estão sempre ligadas à idéia de direito (direito deles sobre a terra), como "a terra é de Deus; … a terra, foi Deus quem fez." Aparecido Galdino, no oeste paulista dos anos 60, quando se referia ao direito que o povo tem à terra, afirmava que o "Reino de Deus é o reino desse mundo" e "… aquele que permaneceu na terra, amou seu irmão, ele herda o Reino de Deus". Dentro dessas concepções há, do mesmo modo, implícita a regra de que os filhos herdam o que é do pai; há uma "descendência simbólica" que sela esse direito à terra, expressa por laços de uma "sagrada família" - são todos filhos de um mesmo Pai, portanto, todos irmãos que devem compartilhar a herança. Podendo talvez melhor esclarecer algumas colocações anteriores - aproveitando a reconstituição etmológica do termo cultus feita por Bosi (1994) em sua Dialética da Colonização como "adjetivo deverbal", como atribuição feita ao campo que já fora arroteado por gerações sucessivas de lavradores, a terra que se lavrou (ager cultus, lavra, roçado) - há um sentido cumulativo na experiência que indica processo (a sociedade que assim procede guarda a experiência, tem memória). Por outro lado, cultus, como substantivo, "queria dizer não só o trato da terra, mas também o culto aos mortos", chamamento ou lembrança. Desse modo, culto e cultivo estão embutidos numa dimensão sagrada. Dentro de regras do direito costumeiro, as práticas sociais permitiram a apropriação de matas, águas e terras, mostrando uma legitimidade que é expressa numa jurisprudência camponesa, na qual podemos identificar dois eixos sempre presentes que orientam tais práticas: os laços de descendência e os laços de territorialidade, constituindo-se sob formas como: terra de remanescentes de quilombos, reserva extrativista, terra de santo, terra no comum etc. Vários dos grupos que hoje discutem um projeto político no qual possam se colocar, buscam restabelecer a unidade grupal, muitas vezes num plano simbólico, o que lhes permitiria ordenar as práticas dos indivíduos perante o enfrentamento com a sociedade, revelando uma nova coesão dada a partir de uma situação de conflito. Esse simbolismo, que fundamenta a luta, é preenchido num sistema de crenças rico em sincretismos, próprio de nossa cultura. Wolf (1974), reafirma a importância de serem estudadas as populações camponesas dotadas de um respeito profundo pela força da tradição, e que tanto a persistência quanto a mudança são pontos de indagação antropológica. As rebeliões camponesas do século XX são interpretadas não como problemas locais, mas reações às mudanças sociais mais amplas. A expansão do mercado, a industrialização, instauraram novas posições e interesses, consolidado novos grupos. A autoridade política tradicional foi abalada e instaurado um novo contexto social, econômico e cultural. A sublevação camponesa não se dá apenas por terra e liberdade, ela tenta impor uma nova ordem, um mundo da justiça - um Mundo Novo. Shanin (1979), analisando a mudança, mostrou que quando o mundo camponês é ameaçado pela sociedade mais ampla, o que está realmente em jogo é a sua própria existência. A perda da área de lavoura e da morada efetiva traduz sempre um movimento reivindicativo que põe o camponês em confronto com a sociedade. Ele passa a estabelecer diferenças entre passado e presente, demonstrando o confronto entre duas ordens: uma tradicional, baseada na reciprocidade, costumes e posse da morada; outra moderna, ditada pelo trabalho assalariado e perda da morada. Esse dilema é encontrado em grande parte da população engajada nos movimentos no campo do Brasil atual, os brasiguaios por exemplo. Retornados para a fronteira brasileira na região de Foz do Iguaçu, eles procuram resgatar valores da vida camponesa dentro dos acampamentos. As transformações econômicas pressupõem que os agentes sociais elaborem uma consciência da privação. Assim, os camponeses se vêem entre duas vertentes impostas pelas mudanças: de um lado a expulsão e a morte; do outro, a terra e a vida. Talvez por isso, antevejam sempre a salvação prescrita na "terra prometida". No caso daqueles que não possuem a terra e têm de conquistá-la, estão em jogo as condições físicas de existência, além de uma luta ideológica e moral que devem travar contra a sociedade, como o faz o Movimento Sem-Terra. Aos integrantes organizados pelo movimento é atribuído um comportamento desviante, perigoso nas caminhadas e ocupações, que deve ser combatido, por se traduzir em baderna e desordem social. A situação de conflito impõe uma guerra da sociedade contra os valores e comportamentos tradicionais, uma vez que a relação de dominação imposta pelos agentes do "mundo moderno" leva os camponeses a uma condição de "degradação moral". Na maioria das vezes, a mídia no Brasil tem se prestado a destituir de validade as reivindicações de grupos organizados, como ocorreu com o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MST, e mesmo as representações indígenas, geralmente mostrados como retrógrados, sujeitos sociais num patamar inferior, "estranhas classes" de pessoas, cuja civilidade ainda está por se fazer. Num jogo de futebol entre jovens de um assentamento do MST e o time de uma cidade do interior de São Paulo, ao término da partida, os jovens da cidade dirigiram-se aos assentados dizendo: "No começo ficamos com medo, mas depois vimos que vocês falam bem e também são limpos...". A noção de sujeira/limpeza é uma construção cultural e, nesse caso, a "sujeira" é ideológica - um quesito de discriminação para menos e para baixo, dentro de uma visão de classe. Tal aspecto, é muito bem abordado por Bailey (1979: 272) em antigo estudo sobre camponeses indianos: "... las sugerencias o las órdenes para que se asuman papeles moderno, políticos o económicos, provienen de la comunidad moral exterior: en consecuencia, automáticamente se definen como peligrosas y pecaminosas, y los aldeanos que adopten los nuevos papeles corren el riesgo de ser marcados como descarnados y castigados". Como as formas de controle e poder são amplamente disseminadas, tornando-se repressoras, preenchendo a vida dos indivíduos e obrigando-os a reinventarem no dia a dia estratégias oponentes, o conflito é latente dentro da vida social. A luta por terra e trabalho assume o caráter político e se inscreve nele. Essa reelaboracão cotidiana é sentida e experimentada nas práticas dos sujeitos enquanto experiências de diferenciação e/ou oposição, gerando contestações de diversos graus e natureza. Tensões internas surgem nos movimentos e exigem de seus membros reflexões que, ao serem feitas, geram uma pedagogia interna para a consecução de seus objetivos e criação de seus quadros. A educação, as relações étnicas mesmo as relações de gênero passaram a ser priorizadas dentro dos assentamentos e acampamentos e passaram a compor uma pauta muito importante nas organizações no campo, dando origem ao Movimento das Mulheres Agricultoras em Santa Catarina e no Paraná, que adotam a luta pela terra na sua construção diferenciada pelas relações de gênero. Há mais de uma problemática posta pelo desenvolvimento da sociedade mais ampla à uma sociedade camponesa que não se reproduz em nível da pura e simples reprodução capitalista, mas engendra contradição entre o modo de vida camponês e o capital. Contradições internas ao mundo camponês, que ora propõem a estes produzir acima de suas necessidades e se engajarem ao mercado, ora propõem reduzir seu consumo ou sua produção, para resistirem às situações hostis impostas pelo mercado. Por isso, a retomada dos slogans dos movimentos no campo (e também urbanos) é marcada por forte oposição às políticas neoliberais que condicionam os projetos e financiamentos para a agricultura, no Brasil e em vários países da América Latina. Essas mudanças ocorridas nas relações entre os camponeses e a sociedade, o Estado ou mesmo o mercado, alteram seus vínculos com a terra. Os conteúdos étnicos, a preservação ambiental, o novo espaço dos assentamentos, exigem redefinir os laços com a terra, uma nova territorialidade. Inspiram também um novo pertencimento, no qual ser camponês não é apenas "estar dentro" de um projeto ou movimento, mas voltar-se para fora. Retoma-se aqui a Bloch (Münster, 1997), ao trabalhar a "redefinição do conceito ser como modo de possibilidade para frente". As migrações e as formas de resistência camponesa têm aparecido como importantes agentes do processo político do campesinato no Brasil, envolvendo as tradições culturais mantidas na memória camponesa, permitindo recuperar aspectos míticos e místicos traduzidos em profecias e profetas, líderes e mártires, cujo culto passa a ser ressignificado pelos movimentos. Essa imaginação traz articuladas política e religião, mobilizando elementos fundamentais na luta camponesa - terra, trabalho e crenças. Não seria sem propósito recuperar o modo pelo qual Ernst Bloch é retomado por Münster (1997) ao tratar das lutas camponesas e apontar para a "teoria das forças religiosas e místicas que impulsionam a consciência revolucionária". As heresias aparecem como comportamento contestante dentro das doutrinas religiosas. O mundo católico as reconheceu na Europa com Joaquim de Fiore, Thomas Münzer, entre outros. As idéias heréticas são relevantes à medida em que constituem uma interpretação divergente das doutrinas, e em que são adotadas pelos indivíduos como resistência e contestação, podendo se expandir em movimentos maiores, transformando o comportamento contestante em uma nova conduta (linguagem, ritual, práticas). Tanto os movimentos milenaristas quanto os messiânicos são, em grande parte, segundo uma valoração negativa, grupos sociais em processo de transformação econômico/cultural fadados à decadência. Consideram-se nessa perspectiva as mudanças culturais trazidas pela colonização e, depois, pelos agentes da modernização aos países em desenvolvimento. Isso leva a uma visão evolucionista da formação social, na qual as formas associativas grupais, cujas relações são tradicionais ou pré-políticas, se transformariam em relações políticas modernas, secularizadas, (ecológicas e até virtuais), condicionando uma avaliação equivocada sobre as atuais organizações no campo brasileiro. Nesse sentido, os movimentos religiosos com grande carga simbólica relacionada ao sagrado e os movimentos revolucionários de caráter secular seriam excludentes. Assim, a ação revolucionária é concebida como algo monolítico, que só se faz mediante um projeto global de transformação da sociedade. As condições em que eclodem os movimentos sociais dependem do grau de diferenciação da sociedade, das relações de poder, do grau de organização das forças produtivas, das esferas políticas, religiosas e culturais. Elas definem as possibilidades que o grupo tem de alcançar os fins propostos, mostrando-se mais restritas ou abrangentes segundo tais determinações. As condições de elaboração de um projeto político dependem também da relação que o grupo mantém com a sociedade envolvente, e da maior ou menor integração com os sistemas de reprodução do poder, podendo estabelecer, de acordo com seus meios de ação, um questionamento radical ou parcial da sociedade, cujos exemplos a América Latina tem oferecido fartamente. Qualquer que seja o caso, a negação do status quo verifica-se de modo a localizar os grupos contestantes numa esfera de relativa autonomia com relação à ideologia dominante, ocupando interstícios da estrutura social e aparecendo como grupos liminares. Esse processo de exclusão alimenta estratégias de sobrevivência e resistência que, na maioria das vezes, resulta numa contra-cultura portadora de novos elementos simbólicos e novas condutas que precisam ser interpretados. Essas ações criam condições para se pensar de que modo a concepção de mundo de setores do campesinato questiona e resiste à noção de progresso imposta pela sociedade industrial. Nessa visão, o progresso em seus aspectos qualitativo e quantitativo evidencia um certo grau de desenvolvimento das relações entre os homens e a natureza, e dos homens entre si, condição que permite a formulação de projetos mais amplos (talvez como a preservação ambiental). A formulação de outros tantos projetos, que muitas vezes se encontram em posição subalterna nas relações da vida material e em posição antagônica na esfera das representações, é assim inibida. Podem apontar para uma outra forma de consciência, ainda que estruturada segundo princípios inscritos nas tradições, no caso, na Grande Tradição (judaíco-cristã). Esse caminhar constante que está no ideário camponês de buscar o novo, descreve sempre a superação do presente como missão. Por isso, em vários momentos, quando as transformações sociais e econômicas provocam crises no interior da vida desses grupos, torna-se iminente o surgimento de um líder capaz de traduzir as angústias e as esperanças na possibilidade de um mundo novo - uma nova geração no caso do messianismo; ou de lideranças que articulem esse novo momento à construção da reforma agrária. No mundo capitalista, a expansão econômica objetivando o lucro e a mediação da mercadoria nas relações sociais elaboram padrões que garantem a reprodução das relações de produção que, de um lado, impõem o controle e a dominação, mas de outro não cobrem recriações (práticas) dos sujeitos ou manifestações que tomam a forma de estagnações ou "retrocessos", e que se apresentam como resistências ao progresso social. É nesse momento, que aparece como ruptura, no qual os grupos sociais numa situação de exclusão elaboram um universo de valores contestantes da ordem social, surgem como "segregadores e subversivos". Muitas vezes esses grupos buscam, numa linguagem mítica ou utópica, a explicação de sua situação cotidiana, restabelecendo no plano do sagrado ou do devir, a condição social que lhes é negada no plano econômico e político presentes. No momento de crise, as representações elaboradas pelo grupo evidenciam maneiras de agir e pensar compatíveis com o contexto de sua existência. A criação de um espaço simbólico permite o reconhecimento da legitimidade e da identidade social por parte daqueles que, numa posição subalterna, tentam reafirmar valores e regras de um modo de vida, opondo-se a outro. Esse antagonismo reflete uma conjuntura por meio da qual se expressam setores de classes diferenciados, exigindo repensá-la não como um conjunto monolítico de sujeitos em oposição a uma outra classe dominante, mas permitindo compreender níveis diversos em que a contradição se dá na sociedade e entre sujeitos através de níveis de dominação, de apropriação dos bens materiais e simbólicos, criando formas de resistência diversificadas. A situação de migração implica uma complexidade de interesses entre os novos sujeitos que passam a compor esses espaços nas novas áreas. Os conflitos gerados pela desigualdade da posse de bens produzem também conflitos de significados, exigindo desses sujeitos novas posturas diante do mundo e das coisas, estranhamentos e resistências. Essas resistências manifestam-se em várias esferas da vida desses grupos camponeses, reconstruindo relações dentro de novos códigos, linguagens e representações. As relações da família, do trabalho familiar, das práticas religiosas e das festas reinscrevem-se num universo novo, que mistura a memória com as novas práticas, passado com o presente. O contato cultural entre segmentos diferentes da sociedade brasileira processou-se historicamente nas áreas de migração, acampamentos e assentamentos, provocando desarticulações e reconstituição de modos de vida, exigindo desses grupos estratégias de sobrevivência. Se por um lado criam mecanismos de enfrentamento com a sociedade envolvente, por outro desenvolvem mecanismos internos que permitem manter uma certa identidade enquanto grupos que nem sempre são opostos entre si, pois também se criam entre muitos deles relações de reciprocidade, diminuindo distâncias sociais, aproximando modos de vida. Os movimentos são bastante complexos por trazerem em si tradicionalismo e contestação. Sua extensão ou duração inscreve-se no âmbito das necessidades impostas pelo grupo, e de sua realização dentro do contexto social no qual ocorrem. É como se os camponeses continuamente tivessem de enfrentar a tragédia das mudanças, vendo tudo se fechando ao seu redor, tendo de descobrir o caminho para passar para o outro lado e reconstruir a vida. Essa travessia, experimentada por tantos grupos camponeses na história brasileira, se traduz na busca, num caminho que está quase sempre no horizonte, onde terra e céu se encontram, e muitas vezes não se separam, nos olhos daqueles que vêem e que crêem. O rito e o culto aparecem nos movimentos preenchendo e ordenando simbolicamente os espaços por onde transitam seus atores. Essa interpretação permeou a participação da Igreja nos movimentos no campo e chegou aos movimentos como o MST, o MPA, remanescentes de quilombos. É uma simbologia que sacraliza o discurso costurando ideologias e mitos, colocando lado a lado Antonio Conselheiro, Zumbi, Che Guevara, Florestan Fernades, Darcy Ribeiro, Roseli Nunes, entre outros. A mística trabalhada no interior do MST, e que hoje é partilhada por outros grupos, representa um "ritual de acolhida" e mais, "uma matriz de formação" para exercício e continuidade da luta, como descreve Caldart (2000) ao mencionar a pedagogia do MST. As ações embutidas numa prática ritual abrem espaço para pensar uma outra lógica, uma outra concepção de mundo, pela qual setores do campesinato questionam e resistem à noção de desenvolvimento social imposta pela sociedade tecnológica/financeira. Nesse enfoque, o desenvolvimento, em seu aspecto quantitativo, evidencia um grau, uma posição na qual os camponeses e demais camadas pobres não se inscrevem. Na literatura antropológica essas questões aparecem em vários estudos, evidenciando processos sociais que caracterizam momentos de transformação pelos quais passam os diferentes grupos sociais. São mudanças que levam não só à transformação da vida material, mas à necessidade de buscarem, quase sempre, uma resignificação simbólica para sua existência. As transformações históricas levaram as sociedades camponesas a um processo de mudança que interferiu não só em sua estrutura familiar, mas também em sua organização econômica, pois tiveram de se colocar dentro de uma nova ordem de relações impostas pela sociedade capitalista, recirando-se. Diante da escassez de recursos técnicos e de linhas crédito, essa população de assentados ou pequenos proprietários é obrigada a criar estratégias de sobrevivência e alternativas que possibilitem implementar a unidade produtiva dentro de uma autonomia camponesa desassistida pelas políticas agrícolas. Faz parte de um conhecimento propriamente camponês, dinâmico e autônomo a apreensão e a classificação da natureza e das coisas, possibilitando o desenvolvimento de técnicas de cultivo que permitem, por exemplo, aproveitar a sazonalidade no semi-árido alagoano - os camponeses que moram na chapada e plantam na caatinga após as chuvas, as roças de milho e feijão - Associação dos Agricultores Alternativos (AAGRA). Outro exemplo desse conhecimento é a seleção de sementes dos pequenos produtores do MPA de São Mateus, no sul do Paraná - mais de 50 tipos de espécies de milho e feijão são selecionadas e trocadas nas feiras de sementes. Diante desse mundo em transformação, o campesinato tem de ser entendido em seus aspectos internos e externos, e na diversidade de suas formas de existência, para que se possa dar conta do significado de sua prática social e de sua linguagem do ponto de vista cognoscente. Enquanto fenômeno social, o campesinato é abordado sob enfoques teórico-metodológicos que se contrapõem, como bem apontou Geertz (1978), polarizando visões marxistas e não-marxistas quanto à análise de classe e sociedade, levando a dicotomias conceituais ainda presentes em muitas análises: "la hermandad frente a la competencia económica de Maine; lo familista frente a lo individualista de De Coulangue; la Gemeinschaft frente a la Gesselchaft de Tönnies; o las sociedades mecánicas (segmentadas) frente a las orgánicas de Durkheim…" (Shanin, 1979). É como se a dicotomia conceitual resolvesse, por meio de um sistema classificatório, a dinâmica das categorias sociais, pela qual o camponês dá lugar ao agricultor, ao pequeno produtor e, hoje, ao produtor familiar. Coisa que o camponês sempre foi; mas quando não se consegue compreender essa categoria em novos contextos, muda-se a sua definição para servir às estatísticas. Torna-se necessário, portanto, uma concepção dinâmica das sociedades, quaisquer que sejam elas, tendo em vista que as transformações surgidas pelo desenvolvimento histórico põem em movimento tanto seus aspectos formais (aparentes) quanto seu conteúdo, que nem sempre guardam entre si uma relação de correspondência direta. A estratificação social colocada por Balandier (1987), relaciona-se a "sistemas de desigualdade e dominação", cujo conflito é inerente à constituição dos segmentos sociais. Os movimentos sociais requerem a existência de grupos diferenciados na estrutura social, que não apenas expressam uma dimensão geral da sociedade na qual estão inseridos, mas expressam essa realidade sob a forma do vivido - o que não afasta formulações de caráter ideológico. Esses movimentos são dotados de conteúdo ideológico, de modo que as crenças ou doutrinas refletem a situação dos setores sociais que formam sua base. Em outras palavras, tomam como preceitos aqueles que parecem justos e adequados a um setor determinado da sociedade para servir como paradigma de experiências. A interpretação sobre as sociedades e as culturas não deve ser feita apenas a partir das determinações gerais impostas pelo processo histórico no sentido de formas sucessórias, tomando como base os elementos determinantes de uma forma mais elaborada que se coloca como grau mais elevado desse desenvolvimento, mas considerar as descontinuidades decorrentes desse processo, que se contrapõe à linearidade e à homogeneidade do desenvolvimento. Os grupos sociais, as práticas e o próprio conhecimento aparecem como elementos dinâmicos e complexos a fim de exprimir o caráter contraditório e heterogêneo do movimento da história. A luta pela terra que o campesinato tem deflagrado é uma luta pela sua recriação. Recriação, porque se dá mediante processos não-lineares dentro de sua reconstituição histórica, ou seja, atravessa descontinuidades. Esta é uma categoria social constitutiva de várias sociedades, e a "estranha classe" constitutiva do capitalismo. Traz em si um tempo próprio de existência, dado pelas lógicas internas que estruturam seu modo de vida, da mesma maneira que responde de formas variadas à lógica social mais amplo. É como se o campesinato vivesse dentro de um processo constante de morte e ressurreição e, nesse movimento, conseguisse descrever a sua trajetória de sujeito histórico. Referências bibliográficas BAILEY, F.G. La visión campesina da la vida mala. In: SHANIN, T. Campesinos Y sociedades campesinas. México, Fondo de Cultura Económica, 1979. [ Links ] BALANDIER, G. Antropólicas. São Paulo, Cultrix/USP, 1987. [ Links ] BALANDIER, G. Le detour. Pouvoir et modernité. Paris, Fayard, 1985. [ Links ] BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo, Cia. das Letras, 1994. 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