RURALIDADE: O DEBATE SOBRE O VELHO E O NOVO NO MEIO RURAL SÉRGIO RICARDO RIBEIRO LIMA
XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
29 DE MAIO A 1 DE JUNHO DE 2007, UFPE, RECIFE (PE)
GRUPO DE TRABALHO: AGRICULTURA FAMILIAR, DESENVOLVIMENTO RURAL E SEGURANÇA ALIMENTAR
RURALIDADE: O DEBATE SOBRE O VELHO E O NOVO NO MEIO RURAL
AUTOR: SÉRGIO RICARDO RIBEIRO LIMA
INSTITUIÇÃO: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ – UESC
CONTATO: sricardo@uesc.br
Ruralidade: o debate sobre o velho e o novo no meio rural
Este tema surgiu da idéia de analisar brevemente as várias interpretações do debate sobre o rural incorporando velhas e novas concepções sobre o tema a partir das transformações que tem passado o mundo, seus reflexos sobre a sociedade brasileira e, nesta, a trama que envolve as implicações sobre o próprio rural e a relação entre o rural e o urbano e, assim, tentarmos extrair desse debate novas idéias sobre a concepção do rural. Partindo dessa idéia, questiona-se que elementos caracterizam o rural atualmente, face às transformações pelas quais tem passado o mundo?
O debate sobre o Rural: velhas e novas concepções. O que mudou?
Trataremos inicialmente aqui das velhas concepções sobre o rural e simultaneamente os processos que alavancaram uma nova realidade do rural e, deste com o urbano.
Na realidade, velhas concepções sobre o ‘rural’ é até um termo duvidoso para se empregar investigando toda a nossa tradição colonial. Pois, rural naquela época era agricultura e, portanto, atividade econômica. Portanto, a noção e os critérios de investigação e tratamento dos dados eram feitos até então em termos setoriais, caráter clássico dos cursos de economia. Assim sendo, o espaço rural tinha significado estrito e restrito enquanto espaço de exploração econômica como gerador de riqueza. Portanto, dividiremos a noção do que aqui chamamos rural em três momentos que, ao contrário de se diferenciarem, se completam. O primeiro seria o espaço rural enquanto espaço da agricultura. Ou seja, espaço rural era espaço de produção, de geração de riqueza material; o segundo momento, que seria resultante da exacerbação desse primeiro espaço e suas consequências, seria marcado pela separação entre o rural e o urbano, entrando o rural num processo de isolamento; o terceiro, também como resultado desses dois, resultaria no debate que está sendo feito atualmente sobre o rural, o que implica, em decorrência do momento anteriror, uma nova concepção sobre o mesmo. Espaço de construção sócio-econômico-cultural, espaço da diversidade. Faremos rápidas apreciações sobre os dois primeiros momentos por serem já explorados extensivamente, havendo vasta bibliografia no campo da história e da economia, principalmente, e, nos debruçaremos mais detidamente no terceiro momento, que por ora é objeto de investigação nesse estudo.
O espaço de produção ou do domínio da agropecuária foi dominante desde o início da colonização, desde a economia exportadora até as economias que serviam de suporte à economia principal, a exemplo da pecuária. Nesse sentido, pode-se dizer que rural não tinha significado, mas o que unicamente existia era agricultura; a terra, em seu sentido mais amplo, como meio de produção e geração de riqueza. Todos os domínios do rural (social, ambiental, cultural, etc.) convergiam para um objetivo único: produzir.
O rural como espaço de produção trazia marcado as delimitações da estrutura fundiária, originariamente e conforme a natureza de nossa economia (agroexportadora), de formação concentradora. Tal estado de coisas trazia embutida uma situação latente de conflito entre uma população rural camponesa despossuída e uma minoria de grandes proprietários de terras e riquezas.
Nesse momento o espaço rural concentrava todas as atividades diretas e indiretas ligadas à atividade agroexportadora, como os serviços intermediários de produção ‘industrial’ e manutenção dos equipamentos. A vida girava em torno do ambiente rural. O urbano nessa época era local momentâneo de festividades e lazer em geral, classicamente interpretado, entre outras obras, por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
No momento posterior, em função da conjuntura política e econômica, quando a atividade industrial se descola do domínio rural, passa a se ampliar os serviços que, juntamente com a produção industrial artesanal, irão concentrar-se nas cidades, dando origem ao setor urbano. O incremento desse processo irá gerar um modo de vida urbano mais valorizado e “civilizatório”, sinônimo de progresso, e o rural começa a ser identificado como atrasado.
O segundo momento será marcado pela passagem de um rural valorizado enquanto espaço unicamente que servia à produção, porém ambiental, social e culturalmente negligenciado, para um rural estigmatizado como sinônimo de atraso. Essa visão do rural predomina durante todo o período de nossa história. As transformações pelas quais passará a sociedade brasileira irá fortalecer o domínio da grande exploração no ambiente rural e, por outro lado, gerará um vazio cada vez maior entre o rural e o urbano.
O Brasil modernizado e progressista conviverá durante toda a sua história com o domínio da grande exploração econômica comercial exportadora, resquícios da era colonial, mas que concentrará cada vez mais nos centros urbano-industriais a visão de progresso e modernidade, relegando ao rural o espectro de atraso, ou seja, não moderno. Vale salientar que essa visão do rural dizia respeito aos aspectos sócio-culturais, pois, sob a perspectiva econômica era o lugar de geração dos fluxos financeiros e da produção do PIB brasileiro.
O processo de modernização das atividades rurais, especialmente a agricultura, irá trazer como conseqüência os grandes desastres sócio-ambientais, com maior ênfase no Brasil, mas com repercussões em todo o mundo. Será nos países chamados desenvolvidos (no sentido econômico do termo) que as mudanças e as reflexões sobre o rural irão acontecer primeiro, a exemplo da França e Estados Unidos. Isto quer dizer que uma nova concepção sobre o significado do meio rural irá sendo engendrada face aos processos que vão acontecendo no meio rural, que veremos adiante. Essa mudança marcará o início do que chamamos de terceiro momento.
Para Mendras (apud WANDERLEY, 2000) “a agricultura constituía o elemento configurador central do espaço rural” ... “onde o meio rural era identificado com o meio natural” (p.p. 91-92). Nas sociedades tradicionais as relações entre o rural e o urbano sempre foram de isolamento e oposição. Com o intenso processo de transformação pelo qual passou a sociedade rural tradicional, perde esta sua autonomia relativa, integrando-se econômica, social e culturalmente ao que ele chama de “sociedade englobante” (p. 93).
Para Moreira (2002) o rural era interpretado como natureza e tradição, incivilidade e culturas homogêneas e primitivas. O rural passa então a ser construído como interdisciplinaridade a partir da concepção de pluralidade que se opõe ao rural tradicional.
Cavalcanti (2004, p. 25) ao tratar da relação entre globalização e ruralidade a partir da produção de alimentos, afirma que a ruralidade passa a assumir uma qualidade distintiva face à caracterização da produção e da distribuição de alimentos para o mercado mundial, de modo que o destino da produção referencia o local. Assim afirma Cavalcanti que “a relação entre globalização e ruralidade tende a ganhar importância...porque a referência ao local de origem das mercadorias e da sua história combinam-se com outros aspectos da qualidade” .
Ressalta Cavalcanti que “os símbolos e as imagens incluem-se na caracterização dos produtos agrícolas” de maneira que “os lugares de produção e as relações entre os diferentes atores passam também a serem valorizados nos mercados”. Daí concluir que “os espaços rurais entram com força na competição do mercado de produtos agrícolas” (idem, p. 26). Traduz-se dessa colocação que a ruralidade é um fenômeno que se constrói tanto de fora para dentro como de dentro para fora do meio rural, mas que emerge dos elementos internos que a compõe.
Wanderley (2004) em seu texto Identidade Social e Espaço de Vida considera o rural, em antítese ao espaço produtivo, como um espaço e um modo de vida. Wanderley (2000, p. 88) aponta duas características fundamentais do rural sob o olhar sociológico: por um lado, representa uma relação específica do homem com a natureza por meio do trabalho e do habitat; por outro lado, o rural apresenta relações sociais diferenciadas que resultam em práticas particulares de convivência com o espaço, com a família, com o trabalho, e, no tempo.
O espaço rural passa por um processo de re-significação de suas funções sociais, na medida em que atrai outras atividades econômicas e interesses de várias camadas da sociedade.
A idéia da “nova ruralidade” impregna também a formação da idéia de território como “espaço delimitado com certo grau de homogeneidade e de integração no que se refere a aspectos físicos, econômicos e às dimensões sociais e culturais da população local” (WANDERLEY, 2000, p. 116). O debate sobre a “nova ruralidade” surge, assim, na interpretação de Wanderley, da inter-relação rural-urbano nas sociedades modernas, em que o rural termina se identificando com o urbano, não havendo precisamente aquele corte que os distinguiam.
Wanderley ao falar do assentamento rural, trata-o como a construção de uma nova ruralidade, no sentido da construção de um lugar de vida. Daí ela colocar que “trata-se . . . de compreender a dimensão espacial da identidade social que é gestada a partir do acesso à terra”. Acrescentando que “no assentamento a vida local funda-se nas relações de vizinhança” (2004, p. p. 63-64).
Para Carneiro (2002) o debate sobre a “nova ruralidade” na sociedade brasileira contemporânea incorpora duas dinâmicas nos espaços rurais, quais sejam:
a) ocupação no espaço rural de outras atividades não propriamente agrícolas, associadas à revalorização do mundo rural, como espaço de lazer ou residência;
b) valorização do campo como “lugar de trabalho e de vida”, através das políticas do Pronaf ou através da implantação dos assentamentos rurais.
Dessas dinâmicas sobre a visão do meio rural resulta que as representações sobre o rural não se sustentam mais na sua desqualificação de “atrasado”, mas sim apoiada na valorização da natureza e do patrimônio sócio-cultural dos espaços rurais (idem, p. 226).
A esse respeito se reporta Veiga (2003, p. 41) ao afirmar que o patrimônio é entendido cada vez mais como uma oportunidade de consumo produtivo..., pois, contrariamente à percepção dominante que se tem de patrimônio, “o mesmo está longe de se resumir a elementos físicos, como as paisagens, obras artísticas ou sítios arqueológicos. Ele também envolve bens imateriais, como as tradições locais, saberes artesanais e culinários, ou a própria imagem do território”. E assim acrescenta Veiga (idem, p. 42) que “a valorização do patrimônio natural e histórico-cultural é muito mais um processo de construção do que uma herança”.
Veiga (idem, p. 91) afirma que há espaços rurais que são dependentes da atração de investimentos, enquanto outros estão mais diretamente vinculados à “capacidade de oferecer serviços a consumidores de alta renda, os quais são atraídos pelas riquezas naturais cada vez mais valorizadas: ar puro, água limpa, belas paisagens e silêncio”. Assim, os espaços rurais que estão comprometidos com sistemas produtivos primário-industriais de impacto ambiental negativo, se vêem diminuídas as possibilidades de absorverem essa vertente do desenvolvimento rural, pois, “a erosão da diversidade biológica só poderá ser controlada se houver simultânea retração de atividades que degradam os habitats e crescimento das que os conservam ou recuperam” (idem, ibidem, p. 178). Vê-se então que entre os espaços rurais que ficam na dependência de investimentos externos e os espaços rurais que buscam a valorização do patrimônio, é bastante feliz a afirmação de Veiga quando diz que a melhor ferramenta do desenvolvimento rural passa a ser o patrimônio natural, que está também, de certa forma, ligado ao patrimônio histórico e cultural.
É interessante observar também que por trás da idéia da preservação e valorização do patrimônio natural e histórico-cultural encontra-se a possibilidade de expansão dos empregos, graças à pluriatividade e multifuncionalidade econômica no meio rural. A pluriatividade é a expansão das atividades exercidas no meio rural, seja por meio do trabalho autônomo nos variados ramos, seja por meio do trabalho para terceiros. A multifuncionalidade diz respeito à diversidade de atividades (inclusive novas) desenvolvidas no meio rural para além da atividade agropecuária.
Carneiro (op. cit., p. 232) tece importantes considerações acerca do conteúdo social dessa nova ruralidade na maneira como o renascimento ou fortalecimento do tecido social no meio rural se expressa pela multiplicação de redes sociais, ou seja, no fortalecimento dos laços de solidariedade. Reforçando mais ainda essa idéia, acrescenta que o movimento de revalorização do patrimônio familiar integrado pela propriedade fundiária, pelas relações de solidariedade e afetividade, compõem os ingredientes da nova ruralidade.
A noção de pluriatividade e multifuncionalidade como nova abordagem para o rural leva em conta a consideração da reprodução social definida não apenas pela satisfação das necessidades econômicas, mas também, e fundamentalmente, pelas demandas culturais e sociais. Desta maneira, a noção de multifuncionalidade, para além da lógica econômica, redireciona os procedimentos analíticos do homem e do meio rural de forma a resgatar a condição humana dos camponeses e de suas famílias. Enfaticamente, afirma CARNEIRO que a “noção de multifuncionalidade da agricultura surge no contexto de busca de soluções para as ‘disfunções’ do modelo produtivista e inova ao induzir uma visão integradora das esferas sociais na análise do papel da agricultura e da participação das famílias rurais no desenvolvimento local” (idem, ibidem, p. 233).
A definição do meio rural ou de ruralidade para Abramovay (2003) abrange 3 ênfases: a relação com a natureza, que supõe o contato mais próximo com o meio natural pelos habitantes locais do que nos centros urbanos; as áreas não-densamente povoadas, que possibilitam o fortalecimento dos laços de sociabilidade nas relações de vizinhança, tratado por alguns estudiosos como “sociedade de inter-conhecimento”, que reforça os laços comunitários; a relação com as cidades, no sentido de que o bem-estar nas áreas rurais depende em boa medida das relações de proximidade com os centros urbanos, por intermédio da maior disponibilidade nestas de atividades econômicas que se estendem até o meio rural e que criam oportunidades de melhoria das condições de vida, em termos objetivos e subjetivos.
Nessa colocação de Abramovay salienta-se dois aspectos fundamentais em relação ao rural: a relação com a natureza e a relação com as cidades. São dois aspectos que tratam de processos históricos de construção pela sociedade ao longo de décadas, ou por que não dizer, de séculos. São ao mesmo tempo dois traços marcantes do que se costuma chamar hoje em dia de “nova ruralidade”. Sempre houve a relação do homem com a natureza, embora a relação do rural com o urbano tenha sido posterior em relação à relação homem/natureza. Porém, o que muda é a natureza dessas relações, as características que implicam nessa relação que, em função de fatores sócio-histórico-econômico e culturais, permitem atualmente, digamos assim, um nível mais elevado em relação aos dois aspectos.
O debate sobre a “nova ruralidade”, de maneira geral, ao abranger várias dimensões no meio rural, traz consequentemente várias implicações sobre o sujeito central do meio rural, o camponês ou o agricultor familiar moderno, o que não cabe explorarmos nesse momento. Porém, Wanderley parte da hipótese de que há entre o camponês tradicional e o agricultor familiar moderno elementos de ruptura e continuidade. Nas próprias palavras de Wanderley, a dubiedade do sujeito social rural resulta de que
os agricultores familiares são portadores de uma tradição, cujos fundamentos são dados pela centralidade da família, pelas formas de produzir e pelo modo de vida”. Neste trecho que se segue à exposição, pondera a autora: “Mas devem adaptar-se (os agricultores familiares) às formas modernas de produzir e de viver em sociedade (2004, p.p. 47-48).
Na análise do campesinato é interessante refletir acerca da afirmação de Wanderley (1999) quando afirma que a agricultura familiar atual herdou um patrimônio sociocultural do campesinato tradicional. Porém, comparando-se os dois momentos, observa-se que se neste último o que transparecia e lhe caracterizava era o viés produtivista, estava oculto o viés sociocultural, que só através da figura do agricultor familiar atual assume relevância, graças ao caloroso debate e a insistência de vários estudiosos em trazer à tona essa nova caracterização e re-significação do agricultor e do meio rural, a partir das transformações pelas quais tem passado o mundo rural, inclusive com o processo de globalização. É como se até então a dimensão sociocultural dos camponeses estivesse adormecida ou negligenciada.
Jollivet citado por Wanderley (1999) afirma que a agricultura camponesa inserindo-se no interior do modo de produção capitalista, sob a ótica do capital, reproduz-se através do “duplo processo de conservação-dissolução”. Jollivet chama a atenção para um importante movimento da relação entre o agricultor familiar e o domínio do grande capital, no qual, dialeticamente, se o avanço do capital no campo quebra relativamente o modus vivendi do camponês, centrado nos costumes, na tradição campesina, por outro lado, a incapacidade do capital em atuar em certos setores, permite a reprodução de certas atividades campesinas no meio rural, como atividades complementares no processo de produção no meio rural, para a reprodução do capital.
Nova Ruralidade: elementos para reflexão
A idéia nesse item é, a partir das idéias dos autores colocadas anteriormente, ressaltar os elementos centrais para reflexão sobre a ruralidade. Afinal, existe “nova ruralidade”? O que significa a “nova ruralidade”?
Parte-se aqui da idéia de que a “nova ruralidade” se trata de um processo, e, como tal, em construção, em função da trama interna e externa que envolve os agentes sociais no meio rural. A nova ruralidade tem a propriedade de ser absorvida em seu âmago sob variados prismas.
A implicação da “nova ruralidade” sobre a relação cidade/campo exige uma abordagem mais aprofundada na medida em que se esse recorte no passado faria sentido, precisando ser melhor qualificado. Essas implicações são diferenciadas quando considerados os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento; na França, por exemplo, o rural está implicado no meio de vida urbano, assim como o urbano está imerso no rural, cabendo aos estudiosos refletir sobre essas sutilezas que caracterizam essa relação do rural com o urbano.
Conforme salientou Abramovay, o rural constantemente se alimenta do modo de vida urbano, principalmente no que diz respeito aos bens de consumo, criando modos de vida moderno, de maneira que o meio rural necessita da cidade para continuar se reproduzindo.
Do ponto de vista sociológico, o rural como espaço de vida tem ainda uma implicação importante quanto aos laços de sociabilidade que cria e perpetua, principalmente com a instalação dos assentamentos, através dos quais se reproduz não apenas relações sociais no seu interior, mas também com a comunidade e as pequenas cidades que os cercam. Aqui caberia o que Wanderley chamou de relações de inter-conhecimento, ou seja, de vizinhança, familiar e extra-familiar.
Porém, como afirma Wanderley, a visão do rural como espaço de vida e de trabalho tem um significado mais sutil para aquelas pessoas que vivem eminentemente no meio rural, na medida em que carrega também um novo significado para o conjunto da sociedade como um todo, quando vai perdendo, de certa forma, o viés unicamente produtivista, para abarcar novos significados quanto à espaço de lazer, de melhor estilo de vida, em contato com o meio ambiente (a natureza), respirar ar puro, ou, mesmo quando dentro de um viés econômico, não se restringe unicamente à agropecuária, mas ao turismo rural, artesanato, etc, de maneira que tem mais a ver com a conservação do meio ambiente.
Entendemos que as relações de inter-conhecimento entre os camponeses tenham significado sócio-político tão importante como traço sociológico de mudança social como o significado propriamente econômico, embora tais sujeitos mantenham uma relativa dependência do mercado para venda de seus produtos e aquisição dos bens necessários à sua reprodução familiar.
Mas o foco central das estratégias de reprodução dos camponeses concentra-se mais nos seus laços de sociabilidade e das relações de inter-conhecimento como valores baseados na tradição e nos costumes como estratégia de demanda frente ao poder público, seja frente ao domínio do capital, que unicamente a dependência do mercado. Essa idéia parece assumir significado maior no caso dos assentamentos rurais, pois em função da história de vida dos assentados e da conquista de uma identidade, como também da concentração dos laços sociais de luta antes e depois do assentamento, eles podem adquirir maior coesão em suas lutas e possível reconhecimento diante da sociedade.
A relação íntima com a natureza é um traço característico da ruralidade e do modo de vida rural, contrariamente ao modo de vida urbano. Sua razão de ser se expressa no contato permanente do camponês com a natureza, de onde tira seus meios de subsistência e, principalmente, em função desse contato permanente, pela relação direta com o meio ambiente, que ao preservar o ambiente natural, reproduz também o espaço de vida de seus moradores. A preservação da natureza atua hoje como suporte para a exploração econômica do meio ambiente através do turismo rural e outras atividades afins, assim como faz parte da lógica produtiva em vários assentamentos a prática da agricultura orgânica que permite a preservação do meio ambiente e produz alimentos ‘limpos’.
A associação entre multifuncionalidade e pluriatividade juntamente com a possibilidade de fixação do homem no campo, seja através da economia familiar ou através dos assentamentos têm atraído políticas públicas para o meio rural, sendo a principal delas viabilizadas através do PRONAF, principalmente no governo Lula.
Outro aspecto importante é que a fixação dos assentamentos em certas localidades tem atraído recursos públicos que favorecem não só os assentados, mas a comunidade rural como um todo. Esse favorecimento ocorre direta e indiretamente: diretamente, através da ampliação dos benefícios de alguns serviços públicos para além do assentamento, beneficiando outras famílias da comunidade local; indiretamente, em função dos créditos de instalação do PRONAF estimular de imediato o comércio local, assim como as atividades econômicas desenvolvidas pelos assentados, na compra e venda de produtos nos mercados locais.
A diversidade do espaço rural diz respeito às várias dimensões que caracterizam a “nova ruralidade”, visto que essas dimensões do rural têm implicações sobre o modo de vida de seus habitantes, os camponeses. Para isso, utilizaremos os elementos centrais dessas novas caracterizações expostos acima. O modo de vida diz respeito no texto à condição na qual as pessoas produzem e reproduzem sua existência, assim como a qualidade dos bens materiais e imateriais consumidos necessários à vida.
Levanta-se aqui a hipótese que a objetividade e o alcance das políticas para o meio rural tem ocorrido em função da mobilização da comunidade local, assentados ou não, e que essa mobilização supomos ser possível apenas devido aos laços de sociabilidade e das relações de interconhecimento, isto é, através da politização que ocorre entre os grupos familiares na defesa de seus direitos e em função de suas estratégias de produção e de vida presentes e futuras.
Um outro aspecto que merece ser ressaltado trata da conquista da terra ao permitir a construção de uma “nova ruralidade”, assim como espaço de vida, aspectos que já foram enunciados acima, mas que traz de significativo o fato de o acesso à terra associar meio de trabalho e meio de vida ou absorção dos frutos daquele. Em dispondo o camponês do meio de trabalho, supõe-se para o mesmo criar estratégias de reprodução do espaço conquistado, o que fortalece também os laços de solidariedade com os demais grupos familiares assentados e com os grupos familiares vizinhos.
A conquista ou acesso à terra ao trazer, anterior a si, uma luta organizada por meio dos movimentos sociais, como também face às mudanças pelas quais tem passado a sociedade em função da implicação da relação homem/natureza, carrega uma nova visão sobre o meio rural. Os meios de comunicação e o avanço da informação tem permitido ao homem enxergar o rural como associado à natureza (terra, água, paisagem, etc.), e portanto, como aquilo que ele tem e deve preservar.
Um aspecto rico desse processo de assentamento é a identidade de assentado criada e história de vida as mais diversas, pois cada grupo familiar quase que possui uma história própria de vida e de contato com o meio rural. Essa realidade reflete as contradições da própria vivência dos assentados por apresentarem famílias com identidades próprias que as fazem unir-se pela identidade coletiva maior que é a conquista da terra e a reprodução do espaço rural conquistado como espaço de vida e de trabalho. Esse processo de mudanças e adaptações é marcado por rupturas e continuidades.
A idéia de espaço de vida e de trabalho tratada no parágrafo acima merece um comentário. O trabalho foi (como não deixará de ser...) a categoria central na teoria econômica clássica de Smith e Ricardo. Porém, para esses pensadores e para a época, o trabalho tinha um caráter estritamente econômico como fonte criadora do valor, assim como também para Marx, embora este o concebesse para além dos estreitos limites da economia. Quando concebemos no texto “espaço de trabalho” é nosso intento interpretar o trabalho como realização íntima do homem, como fonte da vida, e não como realização meramente do valor. Sendo, seguindo a mesma idéia, o “espaço de trabalho” o espaço de realização do homem. Trabalho e vida estão associados, contrariamente à concepção de trabalho e valor ou produto, como algo resultante daquele e que se torna estranho a ele e dele expropriado.
Trabalhamos a idéia de espaço como trabalho e vida como meio de realização do trabalho e, assim, da vida. A noção de trabalho aqui tratada é, em sentido abstrato, refletindo aquele para além do conteúdo e resultado material, como concebia a teoria econômica clássica. O trabalho é parte de realização da vida. O acesso à terra que permite ao homem a conquista do espaço é também algo além do terreno, do produtivo, mas o espaço como manifestação e aspiração dos atributos sociais, espirituais, etc.
Considerações
Um traço marcante que a nova ruralidade traz é a idéia de re-significação do meio rural que, face às mudanças que têm passado a humanidade em suas variadas dimensões ambiental, social, econômica, política e cultural, tem contribuído para uma re-valorização do meio rural para além do espaço produtivo. Nesse sentido, o espaço rural incorpora além do espaço produtivo, uma dimensão mais ampla e mais significativa que este último, como o meio-ambiente, os laços de sociabilidade e solidariedade, identidades culturais de um povo, entre outros atributos. O rural deixa, pouco a pouco, de ser o lugar unicamente da racionalidade econômica.
O caráter colonial, exportador, agrícola e latifundiário de nosso meio rural sempre relegou ao esquecimento ou, em segundo plano, uma realidade que permanecia ignorada pelos poderes públicos e privados de nossa sociedade, que são os camponeses, estranhos que eram às diretrizes econômicas e ao poder aos quais esteve submetido o meio rural e seus moradores.
Quando se fala no novo rural como espaço de vida e de trabalho, não é que antes não houvesse vida nem trabalho, mas que ambos fossem ignorados, sendo o meio rural um espaço unicamente de produção e de geração e transferência de riqueza dentro da tradição econômica clássica da concepção de desenvolvimento.
O problema ambiental ao assumir proporções mundiais tem contribuído muito para um novo olhar sobre o rural, como espaço de preservação das gerações presentes e futuras. E a razão para tal é que se coloca como aspecto central na “nova ruralidade” a ênfase na relação do homem com a natureza, justamente pela ação degradante do primeiro sobre a segunda.
Por último, importa assinalar que a visão dos poderes públicos sobre o meio rural contemple, para além dos interesses econômicos, essas novas dimensões do espaço rural, que ao preservar a natureza preserva vidas e vice-versa.
Vale ressaltar que por mais que se amplie e se debata as transformações no mundo rural, uma realidade histórica se impõe: os traços seculares característicos de uma economia moderna, mas com fortes traços coloniais. Ou seja, mas de cinco séculos de passaram e a base da economia agrícola e agrária do país sustenta a triste realidade da concentração fundiária e de uma promessa de reforma agrária, sustentada (e aí está a diferença) não em uma monocultura, mas em algumas poucas. Temos uma economia que ainda se sustenta num setor e em alguns poucos produtos que respondem aos reflexos do mercado externo de demanda e preço. Era a cana-de-açúcar, foi o café. Hoje acrescenta-se a soja, afora outros e, futuramente, bens agrícolas energéticos para a produção de biocombustíveis.
Podemos dizer que temos uma economia rural com raízes fortemente coloniais, com fins econômico-financeiros (lucros e divisas). Mas, perguntamos: o que isto tem a ver com o chamado novo mundo rural? Tem a ver pelo fato de que por mais que estejamos ensaiando uma nova concepção do rural, ele está fortemente marcado pelo viés econômico, pela não diversidade das atividades agrícolas, não preservacionista, apesar de todos os incentivos dos últimos dois governos, principalmente o governo Lula, para com a economia familiar e a diversidade produtiva.
Entendemos que a lógica econômica dominante no campo brasileiro enriquece uma minoria e passa longe de uma estratégia de desenvolvimento em sentido amplo e sustentável para o país. Isto é, um modelo de desenvolvimento que contemple o econômico, o sócio-cultural e o ambiental. A proposta do desenvolvimento rural e amplo para a sociedade passa, antes de tudo, por uma sensibilidade política às grandes questões que afetam e se colocam hoje para a sociedade brasileira.
O que se coloca por trás das “velhas” e “novas” concepções do rural é o histórico embate de interesses de classes no campo, vencido por uma ideologia dominante contraditoriamente liberal e conservadora. Não o conflito de classes no sentido tradicional. Mas o conflito de classes entre duas formas de autonomia: patronal e familiar (camponesa). Obviamente que esse conflito de classes envolve obrigatoriamente os descaminhos entre a questão agrária e a questão agrícola, entre o projeto privado e o projeto nacional.
BIBLIOGRAFIA
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CARNEIRO, M. J. Multifuncionalidade da agricultura e ruralidade: uma abordagem comparativa. IN: MOREIRA, R. J. & COSTA, F. de C. (orgs.) (2002). Mundo rural e cultura. MAUAD Editora, Rio de Janeiro.
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VEIGA, José Eli da. (2003). Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. Ed. Autores Associados. 2ª ed. Campinas.
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WANDERLEY, M. N. B (2004). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro.
WANDERLEY, M. N. B. (2000). A emergência de uma nova ruralidade nas sociedades modernas avançadas – o “rural” como espaço singular e ator coletivo. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro.
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