A NATUREZA DA FARTURA Flávia Maria Galizoni
A NATUREZA DA FARTURA
Flávia Maria Galizoni
Mestre em Antropologia Social pela USP
Doutoranda em Ciências Sociais pela UNICAMP1
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar os usos que famílias e comunidades rurais
construíram sobre o ambiente e suas relações com as formas de apropriação da terra. A
pesquisa foi realizada no alto Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, região caracterizada
por recursos ambientais escassos, terreno familiar fragmentado e migração sazonal.
Investiga a combinação existente entre apropriação comunitária, apropriação individual da
terra e partilha do ambiente; ao mesmo tempo, discute o dinamismo e a flexibilidade da
família nos processos de acesso à terra.
Unitermos: Terras comuns, ambiente, família.
Abstract: The objective of this is to analize the uses that families and communities make of
the environment and the relationships of these uses with the forms of land appropriation.
The research was done in the upper Jequitinhonha river vallery, northeast of Minas Gerais
state, a region characterized by scarce environmental resources, fragmented family land and
seasonal migration. It investigates the combinations existing among community
appropriation, individual apprppriaton of the land and sharing of the environment; at the
same time, it discusses the dynamism and flexibility of the family in the processes of access
to the land.
Uniterms: land, environment, family.
1 Rua Elbert Vilela, nº 1731. Bairro Centenário. Lavras, MG, cep: 37.200-000. E-mail: fgalizoni@bol.com.br
A NATUREZA DA FARTURA
Flávia Maria Galizoni
Mestre em Antropologia Social pela USP
Doutoranda em Ciências Sociais pela UNICAMP
Convidados a discorrer sobre suas terras, os lavradores do alto Jequitinhonha, no
nordeste de Minas Gerais, falam primeiramente do ambiente e de suas lavouras: "Assim: eu
tenho ao todo uns 20 alqueires, destes uns 5 são de terra de cultura, uns 5 de catinga e uns
10 de campo" 2. Perguntado sobre o tamanho de sua gleba de terra, os lavradores são
imprecisos: "Eu tenho mais ou menos uns 20 hectares" ou ainda: "Documentado eu tenho 5
alqueires, mas eu domino uns 60 alqueires". Ou mais desconcertante: "Eu não tenho um
palmo de terra, tenho casa, tenho manga de criação, mas é no terreno de pai. Não é igual a
pessoa dizer eu tenho uma terra".
Investigar sobre terra no alto Jequitinhonha é deparar com elementos como
imprecisão no tamanho, terra no comum de uma família, terrenos descontínuos, e categorias
sociais como dono, posseiro e ocupante. Neste contexto, terra é um sujeito que necessita
integralmente de predicado: é terra de planta, terra de solta, é terra em descanso. A terra,
nessa região, está sempre em movimento, tem uma historicidade de uso que vai
qualificando-a, revelando que está intrínseca e indissoluvelmente imbricada às diferentes
utilizações que possa ter no correr dos tempos: lavoura, criação e extração. A definição da
terra não é apartada de seus usos, e nem estes da relação com o ambiente. Para se entender
as relações estabelecidas entre famílias e terra no alto Jequitinhonha, é necessário, antes de
tudo, compreender como o ambiente é usado e regulado pelas famílias e comunidades
rurais.
O acesso à terra no alto Jequitinhonha é mediado por vias que estão embutidas nas
relações de parentesco: a descendência e o casamento. Adquire-se terra por herança, ou
casando-se com quem tem terra, ou ainda, abrindo uma posse. Mas, mesmo no movimento
2 Todas falas de lavradores reproduzidas no artigo foram obtidas em entrevista de campo na região, entre
janeiro a setembro 1999.
de posse, não estão excluídas as relações familiares, tanto no mote que o impele, quanto no
apoio familiar para a empreitada.
A história da família se funde com a história da terra; falar de uma é sempre remeter
a outra, e ambas estão em constante movimento. Simbolicamente e na prática, a terra é o
lugar de produção e reprodução da família e se apresenta como um patrimônio construído e
transmitido pelo trabalho familiar. Mas família é um conceito histórico e cultural, possuindo
concepções que variam muito no tempo e no espaço. Do ponto de vista antropológico, de
acordo com Durham (1986), família pode ser definida privilegiando tanto o aspecto de
equação formal do parentesco quanto, ao defini-la, pode-se enfocar especialmente a
configuração de grupo responsável pela reprodução social. Essas duas esferas, parentesco e
reprodução, podem estar sobrepostas ou não.
No alto Jequitinhonha família possui um significado duplo. É unidade de reprodução
constituída pelo marido, mulher e filhos, quase sempre coincidindo com o grupo doméstico,
mas nem sempre com o de residência. Significa também rede de parentesco - tios, primos,
sobrinhos etc - uma família ampliada derivada de um ancestral comum. No termo família
estão articuladas estas duas definições, sendo que podemos entender a família nuclear como
um ciclo de fragmentação da família extensa3.
É através da categoria "parente" que é permitido o acesso à terra e recursos naturais
nas comunidades rurais desta região. E o que chamamos comunidade, é sempre uma
comunidade de parentesco: um grupo familiar extenso, com várias famílias conjugais
descendentes do mesmo(a) fundador(a) do grupo e ao mesmo tempo o (a) primeiro(a)
posseador(a) da terra4.
O objetivo deste artigo é analisar como, na calha alta do rio Jequitinhonha, posse e
uso da terra se compõe com o ambiente e com a família, formando com eles uma urdidura
3 Esta assertiva local de família está muito próxima da explicação oferecida por Pereira de Queiroz (1973: 53)
em sua reflexão sobre o campesinato brasileiro: "A família do sitiante se apresenta como conjugal do ponto de
vista econômico, porém se define como parentela, quando tomamos a perspectiva das relações sociais" .
4 Faz-se necessário realizar uma distinção entre os vários significados do termo comunidade na área
pesquisada. Apesar de ser um termo corrente para denominar os agrupamentos rurais, comunidade é
designação recente, dos finais dos anos 1970, início da década de 80. É uma expressão que tem seu uso
associado a uma organização para finalidades de mediação com o mundo externo, principalmente religiosas -
as Comunidades Eclesiais de Base; associativista - organizadas em torno de um projeto de ajuda ou
desenvolvimento; e como uma unidade de planejamento da administração municipal. São múltiplos os recortes
que o termo comunidade designa. Por uma questão de conforto, utiliza-se o termo comunidade, mas
que passa pelo trabalho, herança, migração e casamento, fornecendo elementos importantes
para se compreender a sociedade rural que se estabelece nesta região.
Ambiente
A relação entre um grupo social específico e a natureza onde ele está assentado é um
tema recorrente para a antropologia. Evans-Pritchard (1978) investiu boa parte do seu
estudo sobre os Nuers na análise das relações entre esta sociedade e o meio, revelando como
este era um elemento participativo da organização social; Mauss (1974) mostrou como
variações sazonais do ambiente influíam em formas de vida dos esquimós; Malinowski
(1978) examinou o sistema de magia entre os trobriandeses, analisando os rituais de suas
lavouras e, através delas, também compreendeu princípios de trabalho e estética desse povo.
Por sua vez, Leach (1996) foi extremamente perspicaz ao equacionar a relação entre grupos
sociais e meio; segundo esse autor, os fatores ecológicos têm um importante influxo sobre
os diferentes modos que um grupo obtém sua subsistência; porém, são fatores limitantes, e
não determinantes 5.
Os vários estudos apontam que formas específicas de concepção do ambiente e
espaço não são somente modos de ajustamento ao meio, mas, principalmente, revelam como
um determinado grupo social se apropriou do meio e organizou seu espaço. Diversas
pesquisas sobre sociedades indígenas demonstram que sua concepção de espaço está
intimamente ligada com a ordenação do universo. É clássico o estudo de Lévi-Strauss
(1986) sobre a aldeia circular dos Bororo e sua correspondência com a concepção, também
circular, de sua cosmologia6.
Cândido (1975) foi um autor que, ao abordar sociedades camponesas, trouxe para o
centro da discussão o ambiente, como um fator ao mesmo tempo dadivoso e limitante para
as organizações produtivas dos lavradores. Mostrou como a mobilidade em busca de novas
terras é moto contínuo na "sociedade caipira" por ele estudada; uma mobilidade movida pela
agricultura itinerante somada com o tamanho da família. Quando, no quadro das técnicas
agrícolas dos lavradores, um determinado meio se exauria, o agricultor corrigia a situação
pela mobilidade. Esta atuava recriando o meio e as condições desejadas de produção,
denominando através dele a estrutura de parentesco que as famílias e pessoas da área de estudo reconhecem
como o núcleo básico de organização.
5 O que é ultrapassado na literatura antropológica é o enfoque que considera o meio físico como determinante
principal e exclusivo das características de um povo ou sociedade; Boas (1992), em artigo no final do século
dezenove já desbancava esta perspectiva explicativa.
reestabelecendo o equilíbrio entre população e ambiente. De acordo com Cândido, o meio é
uma projeção da cultura, o espaço é uma construção humana, os animais e as plantas não
constituindo, por si, alimentos, pois são "(...) os homens quem os cria como tais, na medida
em que os reconhece, seleciona e define" (Cândido, 1975: 28). Interagindo com o meio, a
cultura humana constrói significados, usos e regulações para as disponibilidades da
natureza. Brandão (1981) foi outro autor sensível a este aspecto, revelando a historicidade
entre a elaboração cultural e social que grupos específicos realizam sobre o ambiente.
Os processos que os lavradores utilizam para conhecer, discriminar e usar o
ambiente são extremamente importantes para entender como grupos camponeses concebem
e ordenam o espaço. Pereira de Queiroz (1973), em estudos sobre o campesinato brasileiro,
revela que os espaços geográficos, sociais, sobrenaturais, formam um todo inseparável, mas
ao mesmo tempo ambíguo; o espaço é vasto e difuso, mas percebido por um recorte dado
pelos instrumentos culturais da sociedade em questão.
Alto Jequitinhonha
A calha alta do rio Jequitinhonha, localizada na porção nordeste de Minas Gerais, é
região caracterizada por predominância de unidades familiares na agricultura, posse da terra
pulverizada, baixo dinamismo econômico, alta taxa de migração tanto sazonal, quanto
definitiva, e agricultura extrativista baseada em um sistema de pousio.
As famílias de lavradores do alto Jequitinhonha localizam suas casas, sempre que
possível, próximas aos cursos d'água. Por, praticamente, toda a região, o local de moradia
das famílias, os agrupamentos de casas e as comunidades são designados pelo córrego, e
cada córrego é consagrado por um nome. Pode ser nome de santo (Santa Rita, São Miguel,
Bom Jesus, São Bento), árvore (Pequizeiro, Pau D'óleo, Canela D'ema), animal (Mandaçaia,
Cabra, Peixe Cru, Caititu), descrições geográficas (Morro Redondo, Poções, Bocaina,
Vargem, Noruega), denominações de fatos familiares ou históricos (Degredo, Posse, Moça
Santa, Ferreira) ou, ainda, jocosos (Pela-Macaco, Chiqueiro dos Porcos); estes, nem sempre
de gosto dos moradores.
Os vales ou vãos de córregos são chamados grotas, e um conjunto de vizinhança é
sempre a soma de vários córregos, várias grotas. As grotas são as meias encostas, os vales,
áreas úmidas e frescas próximas às nascentes e córregos. É na grota que os agricultores
6 Ver também os vários artigos em Novaes (1983).
localizam boa parte de sua unidade de produção: casas e quintais, roças e mangas (manga de
pasto, pastagem plantada). A contraposição às grotas são as chapadas. Chapadas são
espigões: grandes extensões de terras planas e elevadas, naturalmente pouco férteis, com
escassas fontes de água. As chapadas não foram ocupadas com moradias; normalmente são
áreas utilizadas para extração ou pastagem comunitária.
O alto Jequitinhonha possui, desta forma, um relevo marcado por espaços distintos.
Mas, ao mesmo tempo, complementares. Há uma disposição dessas gradações do relevo,
compondo um complexo - chapadas caracterizadas por planaltos, grotas pelas encostas dos
vales. Esse complexo comporta uma totalidade: no alto Jequitinhonha não há chapada que
não despeje em grotas, nem tampouco grotas que não culminem em chapadas.
Essas sucessões do relevo fazem-se acompanhar de uma enorme variedade de
vegetação, proporcionando um entrelaçado vegetal marcado ora por nuances suaves, ora por
rupturas bruscas. No fundo das grotas, nas margens das águas, encontram-se árvores mais
portentosas, aéreas, vegetação cerrada e de um verde escuro. Conforme o observador se
desloque, subindo das grotas para as chapadas, a vegetação vai sofrendo transformações no
tamanho, ficando menor; os troncos vão-se tornando retorcidos e suas cascas engrossando,
formando nódulos na superfície. Algumas chapadas possuem como cobertura vegetal
somente ervas e arbustos, principalmente angiquinho e capim do campo. A incidência de
pedras na superfície do solo também aumenta em ordem crescente das grotas para as
chapadas. Apesar de seguir uma certa lógica na distribuição da vegetação, a natureza é
caprichosa e, assim, pode-se deparar com verdadeiras matas na chapada7, ou então encontrar
árvores retorcidas e pedras nos fundos das grotas como em algumas comunidades dos
municípios de Chapada do Norte e Minas Novas. 8
O complexo chapada-grota é uma moldura onde se desenrola a trama das famílias
lavradoras com a terra. É uma moldura interativa: ao mesmo tempo que delimita as ações
das pessoas, é reelaborada pela intervenção humana. As diferenças ofertadas pelo meio são
significadas, reordenadas pela discriminação, intervenção e trabalho das famílias lavradoras.
Sobre um meio desigual, agricultores construíram um sistema de produção que abarca essa
desigualdade, tirando mesmo proveito dela. No alto Jequitinhonha, o princípio do ajuste das
7 Como a mata da Acauã, localizada no município de Leme do Prado.
8A gradação da vegetação perpassa também a sutileza e o abrupto quando observada no correr das estações.
Desta maneira, formam-se impressões muito diferentes da região se a observação for realizada na seca ou nas
águas.
famílias ao ambiente baseia-se na variabilidade do meio e na mobilidade das atividades
produtivas.
As várias zonas ecológicas e variações ambientais que chapadas e grotas apresentam
em seu interior são - segundo os lavradores - intimamente relacionadas às distribuições
desiguais de fertilidade da terra necessária para fazer lavoura. Partindo deste critério,
lavradores construíram formas de identificar o grau de fertilidade, utilizando principalmente
a observação da vegetação, das comunidades de plantas e conjunto de árvores
predominantes. Os matizes da vegetação indicam ambientes diferentes, e cada zona
ecológica distinta indica potencialidades de usos específicos: lavouras de mantimento
(milho, feijão, amendoim, abóbora, cana-de-açúcar, quiabo etc), mandiocal, extração e
pastagem para as criações.
Com base na vegetação, potencial de uso e distribuição espacial, os lavradores
construíram uma classificação das diversidades ambientais recorrentes na região: cultura,
catinga e campo9. As terras definidas como culturas são caracterizadas por terrenos frescos,
úmidos e férteis, próximos a cursos d'água, e consideradas as melhores para cultivo das
roças de mantimentos. Normalmente são terras onde predominam madeiras como angicos,
aroeiras, cipós tatu e timbó, aroeirinha, pereira, vara-de-canoa, ingá, marmelinho e
mutamba; as terras de culturas aparecem tanto nas grotas quanto nas margens dos rios. As
terras denominadas catingas10 geralmente se localizam nas cabeceiras dos córregos, nas
vertentes, e são utilizadas para cultivos de plantas rústicas como a mandioca, abacaxi e, às
vezes, café; as árvores nativas da catinga possuem grande porte: pau terra, pau d'óleo,
marmelada. Nas terras identificadas pelos lavradores, como campo ou carrasco,
predominam capins nativos, arbustos e árvores como o muçambé, cagaita, monjolo e maria
mulata; não são áreas propícias para lavouras, sendo utilizadas somente para pastoreio e
extração de madeira, lenha, frutas e plantas medicinais.
Essa classificação é complexa, requerendo um conhecimento detalhado e profundo
da natureza, porque algumas plantas podem estar presentes em ambientes diversos,
9 Há pequenas variações nas denominações da vegetação na região, assim como subdivisões dentro de cada
uma dessas classificações. Por exemplo: dentro da categoria campo, algumas comunidades distinguem campos
gerais (arbustos e principalmente capins nativos); outras comunidades indicam carrascos, área de campo, mas
com árvores de grande porte; há também áreas de vargem, tabuleiros, mata etc. Porém, aqui não se entrará
nestes detalhes; os termos cultura, campo e catinga são difundidos por toda a região e indicam a primeira e
mais global classificação e divisão do ambiente.
10 Catinga é o termo mais controverso, porque ao contrário do sentido usual, catinga na região significa uma
vegetação de grande porte, sendo praticamente sinônimo de mata; a explicação talvez esteja no significado tupi
da palavra caatinga: mata branca (Explicação sugerida pelo Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira).
dependendo da combinação que fazem com um grupo específico de árvores - por exemplo o
pau-d'óleo e o pequi. Por outro lado, existem árvores que são indicação irrefutável de
determinado ambiente e tipo de terra, como é o caso da aroeira e angico para a terra de
cultura, ou do muçambé, monjolo e vinhático para o carrasco.
As famílias de lavradores fazem suas lavouras de acordo com o uso prescrito para
cada zona ecológica, distribuindo roças de milho, feijão e cana-de-açúcar pelas áreas de
culturas, mandiocais nas áreas de catinga, soltando criações para pastar nas áreas de campo.
As manchas de terras de cultura não são contínuas; ao contrário, estão mescladas com os
terrenos de outras qualidades, as catingas e campos, compondo uma terra de extrema
heterogeneidade no que diz respeito à fertilidade natural da terra. As roças são salteadas nos
terrenos, procurando as manchas de terras de cultura dentro do lote que as famílias usam em
comum. "As lavouras não são ligadas porque as terras também não são. Os talhõesinhos
são separados": é assim que os lavradores explicam a lógica e a estética de suas roças nos
terrenos que usam; no caso, o agricultor autor desta fala usa quatro áreas para lavoura, todas
próximas à sua casa, porém descontínuas, e coloca suas criações numa gleba de campo
afastada de sua moradia: "Minha terra não é igual".
A disposição do recurso fertilidade coloca para as famílias de lavradores um
problema fundamental, que diz respeito ao estoque de terras disponíveis para a lavoura: as
roças são feitas em sua maioria nas terras de cultura, mas esta é escassa11. A forma pela qual
as famílias resolveram esta questão foi conhecer, discriminar e usar; construíram
comunitariamente técnicas de classificação intrinsecamente ligadas ao uso. Criadas a partir
da escassez de um recurso - terra de cultura - são sistemas de produção maiores que uma
resposta à escassez; são sistemas que incluem toda uma ordenação de uso do ambiente.
Lavouras
Toda lavoura familiar no alto Jequitinhonha começa com a escolha do terreno, e para
escolhê-lo leva-se em conta a disponibilidade de terra, a cobertura vegetal, a declividade, a
exposição ao sol e, principalmente, o que se pretende plantar. O tamanho e a grossura das
árvores também é fator importante na decisão, porque demonstra o tempo que aquela área
está em pousio: quanto mais encorpada for a vegetação, maior é o período de descanso da
11 Estudos realizados na região confirmam esta observação dos lavradores, apontando que somente um quinto
dos terrenos é naturalmente fértil e próprio para a atividade agrícola. Ver Rima UHE/Irapé (Cemig, 1992) e
Ribeiro (1997)
terra e conseqüentemente maior tende a ser a sua fertilidade. Cobertura vegetal mais densa
indica também que, após a queimada, haverá menos incidência de ervas invasoras.
Selecionado o terreno, o próximo passo é derrubar as árvores do local, utilizando-se,
para este trabalho, machado ou foice - dependendo da dimensão da vegetação. Cortam-se as
árvores bem próximo do solo, deixando somente os tocos do tronco. Vem daí um dos nomes
pelo qual os lavradores denominam a lavoura: roça de toco. As galharias em bandeiras de
lenha são denominadas coivara, sendo este o outro nome pelo qual a lavoura é designada:
roça de coivara.
Feitas as coivaras, inicia-se a próxima etapa: colocar fogo. O fogo não é posto de
maneira indiscriminada; ao contrário, é posto com critério, de uma forma precisa para se
alcançar a decoada (o caldo resultante da mistura da água de chuva com as cinzas) propícia
a fertilizar o plantio que se vai fazer12. Por exemplo, fogo para se plantar feijão é diferente
na intensidade do que aquele que se usa para a cana; de acordo com João da comunidade de
Cachoeira de Ribeirão da Folha, município de Minas Novas: "Dependendo da lavoura que
se quer fazer, coloca-se um tipo de fogo, o feijão da seca gasta pouco fogo, já o feijão das
águas gosta de fogo forte para produzir". Se a vegetação da área roçada é de grande porte, o
fogo pode ser mais intenso, e neste caso diminuem-se, através da sua ação os tratos
culturais.
Após a queima da coivara inicia-se a destoca. Essa tarefa consiste em revirar a terra
com a enxada e retirar os tocos mais finos. Segundo os agricultores, essa operação está
ligada à densidade da vegetação somada ao tipo de plantio que se vai fazer: para o feijão de
arranque é necessário destocar a terra, porque ele dá em moitas rasteiras; já o milho, que
possui maior crescimento vertical, não gasta muita destoca.
Estando pronta a terra, aguarda-se o "bom tempo", a época das chuvas, para se
realizar o plantio. Há uma série de associações de plantio que os lavradores realizam13. As
roças sempre são a combinação de séries de plantas, consorcia-se principalmente milho,
vários tipos de feijões, abóbora, andu, quiabo e, em menor escala, algodão. As roças de
cana e mandioca - plantas perenes - são combinadas com outras somente no primeiro ano de
plantio; depois, ficam sós na terra. Somente o amendoim e o arroz, pelas suas
12 Sobre o fogo como uma técnica ver Boserup (1987), Ribeiro (1997) e Posey, (1987).
13 Garcia Jr. (1983) analisa essa composição múltipla e policultora da roça familiar e sua importância
econômica.
características, são plantados separados. O plantio, geralmente, acontece entre outubro e
novembro.
São realizadas, pelo menos, duas capinas nas roças. A primeira, após
aproximadamente vinte dias do plantio; a segunda, chamada repasse, depois de uns 30 ou
40 dias. O repasse se faz, geralmente, quando o milho está pendoando, e junto com esta
capina o lavrador chega terra aos pés de milho, uma operação que, segundo eles, é essencial
para o bom desenvolvimento das plantas.
A colheita possui vários ritmos, relacionados, é claro, ao ciclo de crescimento das
diversas plantas. Colhe-se o milho, geralmente, se não houver perda na produção, entre os
meses de março a abril; o feijão colhe-se em janeiro ou fevereiro; a cana é colhida e
beneficiada principalmente em agosto; também nesse período - chamado da seca, entre
março e outubro - é que se colhe e se beneficia a mandioca.
Enumeradas desta forma as etapas para se concretizar a roça, tem-se a falsa
impressão de que fazer roça é uma operação simples e rotineira. Nada mais equivocado.
Roça é cálculo, ou melhor, é sempre o resultado de uma série de cálculos que combinam
diversas variáveis, em que se faz necessário procurar diminuir a margem dos imprevistos,
dos imponderáveis. A roça é um jogo de xadrez que o agricultor joga com o ambiente: a
construção de estratégias de ação calcadas no conhecimento de como se comporta a
natureza, buscando minimizar suas margens de erros, tentando prever os movimentos do
tempo, para alcançar ao final o objetivo de produzir alimentos.
Para realizar a roça as famílias precisam antever e combinar quantidade de mão-deobra
disponível, com qualidade e declividade dos terrenos que possuem, disposição do
ambiente e pauta alimentar que precisam minimamente alcançar para sua alimentação. A
roça é sempre a conclusão de uma cadeia de operações que envolvem terra, ambiente,
família, trabalho, conhecimento, técnica e muitas contas.
A roça de toco ou de coivara é um sistema que combina, principalmente, duas
técnicas: a recomposição da fertilidade da terra por meio de rotação de terrenos e a brotação
natural da vegetação 14. A família lavradora prepara um terreno para roçar e realiza o plantio
nessa área por um período de 2 a 3 anos; após esse tempo o terreno é posto em descanso
para enfaxinar, e a família então prepara nova gleba para nova roça e assim ciclicamente.
14 Esse sistema foi descrita por Castaldi (1957) e Ribeiro (1997) para a região e por Bloch (1978), Wolf
(1975), Boserup (1987), Galvão (1979), Ribeiro (1976) para outra áreas.
Como a roça de coivara repõe a fertilidade da terra através do pousio, cada família
precisa, para que esse sistema funcione, de um terreno de cultura muito maior do que sua
lavoura, porque, enquanto uma área está produzindo, outras estão descansando - esse pousio
é demorado, gastando na região, em média, segundo cálculos de Ribeiro (1997), de 10 a 15
anos para recuperar totalmente a vegetação. Passados alguns anos, as posições das lavouras
estarão invertidas: as áreas que estavam produzindo estarão em descanso e aquelas que
estavam em pousio estarão em produção. Os usos variados dos terrenos formam uma
espécie de mosaico, com áreas em preparo para uma nova roça, outras em lavouras em plena
produção, algumas com roça em final de produção e, outras ainda, em processo de descanso
e reposição da vegetação. A lavoura sincroniza um movimento seqüenciado entre roças
perenes, roças velhas, recomposição da vegetação e roças novas. Os lavradores precisam
combinar a abertura de uma terra nova, quando derrubam mato grosso, com o trato de uma
área - a palhada - que já foi roça no ano anterior e que no próximo ano será colocada em
pousio.
A lavoura no alto Jequitinhonha é resultado de um cálculo entre as possibilidades
produtivas da terra e da família. Como o ambiente é desigual, os lavradores têm que pensar
em estratégias diversificadas para compor sua produção. Esse sistema apresenta mobilidade
muito grande no espaço, as roças circulam no ambiente em busca da fertilidade da terra, ou
melhor, se locomovem para não gastar demais a fertilidade. "Meu sistema de lavoura é
assim: trabalho manual e a natureza. Na minha terra, enquanto uma parte está produzindo
a outra está descansando", relata um lavrador da comunidade Gigante, município de
Botumirim.
Como a chuva na região acontece em um período concentrado de aproximadamente
dois meses por ano e ocorrem ciclos de seca, as famílias enfrentam a imprevisibilidade do
tempo distribuindo suas lavouras de milho e feijão nas culturas de baixadas, beirando rios e
córregos e na cultura de meia encosta. Se o ano for seco, salvam-se as roças das baixadas
naturalmente úmidas, mas se for ano em que a chuva concentrar muito, sujeito às enchentes,
salvam-se as lavouras das meias encostas.
O produto final expresso na colheita é sempre combinação dinâmica do ritmo de
crescimento de cada planta, da sucessão das plantas no interior da roça, do tempo de
alqueive - há rotações rápidas e outras mais demoradas - e, principalmente, da composição
do trabalho da família. A lavoura é concretizada através da soma de várias jornadas de
trabalho que envolvem todo o grupo familiar: homens, mulheres, crianças e idosos.
Recursagem
Na técnica de lavoura desenvolvida pelas famílias do alto Jequitinhonha, a
manutenção da vegetação nativa é muito importante: a natureza é elemento constitutivo da
roça. As famílias necessitam sempre de áreas com vegetação e cobertura vegetal para
iniciar um novo ciclo de plantio. Por isso é necessário deixar as terras do plantio em pousio
para criar vegetação e, através deste processo, recuperar parcialmente sua fertilidade. O
sistema de lavoura é composto por um movimento pendular onde numa extremidade
localiza-se a natureza e no outra a lavoura. Tal qual um tabuleiro de xadrez assimétrico, o
espaço nas comunidades rurais do alto Jequitinhonha é esquadrinhado, alternando mato e
roça, lavoura, criação e extração.
Na ordenação das relações entre família e natureza há um elo profundo entre lavoura
e extração15. As áreas que estão em pousio recebem outros usos que não os agrícolas: são
áreas de coleta, de caça, de pastagens para as criações e reserva de recursos naturais.
A atividade de extrair recursos da natureza é designada pelos lavradores como
recursagem. A recursagem possui um significado elaborado, mais que uma coleta aleatória,
representa uma extração ordenada, pressupõe um recurso ofertado pela natureza, mas
adquirido pela intervenção humana. É um potencial da natureza recursado pelo
conhecimento sistematizado e conjunto de técnicas da família. Recursar é um sistema de
extração de recursos da natureza que está concatenado com a classificação e discriminação
do meio e, tal qual a lavoura, é procedimento técnico ensinado aos membros da família
desde a mais tenra idade.
Os recursos naturais são importantes em todos os âmbitos da vida dos lavradores,
estão presentes cotidianamente em todas as esferas: na alimentação nos apetrechos
domésticos, móveis, matéria-prima para construção de casa, medicina, instrumentos de
trabalho e lazer. Como são disponibilizados pela natureza, pode-se pensar que não possuem
usos regulamentados pela comunidade, que são utilizados desregradamente pelas famílias.
Mas, o que se observa nas comunidades rurais do alto Jequitinhonha é que a exploração de
recursos naturais é constituída por regulações comunitárias das ofertas da natureza16.
As áreas de extração são regidas por códigos que combinam a necessidade das
famílias e comunidades com o recurso em questão, construídos formas diversificadas de uso
15 Sobre a relação entre lavouras, bosques e pastagem na conformação dos sistemas agrários ver Bloch (1978).
16 Sobre usos coletivos de recursos naturais ver Bloch (1978), Boserup (1987), Malinowski (1978) e Posey
(1987).
e apropriação. São exemplares neste sentido as soltas ou largas. São áreas de campos e
carrascos onde qualquer membro da comunidade pode colocar os animais para pastar; não
são cercadas e, geralmente, pertencem a várias famílias; as criações podem comer em
qualquer lugar, na área preferencial de uma família ou outra, porque os animais dela
também comem nas áreas de outros. As soltas dificilmente são privativas de uma única
família nuclear: ou são comunitárias ou de uso de uma família extensa. Isto fica claro na
definição que os lavradores do município de Botumirim fazem das áreas de soltas de
criações: "o terreno tem dono mas todo mundo da comunidade pode usar"; "a solta é
dividida, mas não é cercada porque cada um sabe onde está a sua solta. Pega o terreno cá
embaixo e leva até em cima, não tem problema a criação comer na solta de outro" .
Na comunidade de São Bento, por exemplo, há áreas de solta, de uso comunitário,
onde todas as pessoas podem deixar pastar seus animais e criações; a solta "usa ficar" nos
intervalos das divisas com outros confinantes. Cada lavrador deixa parte de sua posse
aberta, cercando somente a roça. As soltas se dividem em soltas familiares, quando somente
membros de uma determinada família - pais, filhos, irmãos, sobrinhos - podem usar; soltas
comunitárias quando o conjunto de famílias que forma uma comunidade utiliza a gleba
comunitariamente; e soltas inter-comunitárias quando combinam extremas de várias
comunidades. O chapadão do Tamanduá se encaixa neste último caso: é uma solta que três
comunidades - São Bento, Ouro Podre e Noruega - usam em comum.
É principalmente nas áreas de soltas que ocorre a coleta de frutos e plantas
medicinais. Apesar de haver áreas preferenciais a uma família, outras também podem
usufruir desses recursos e, na maioria das vezes, sem pedir consentimento prévio. Mas essa
aparente liberalidade no uso dos recursos renováveis se restringe aos membros da
comunidade. O mesmo código ou princípio é usado nas vargens, onde são colhidas flores -
especialmente as variedades de sempre-vivas, flores nativas destas vargens que possuem um
processo de secagem natural no próprio pé, colhidas de janeiro a março - que representam
importante fonte de recursos financeiros para as famílias na estação seca 17. O caso de José,
lavrador de uma comunidade situada no município de Botumirim ajuda a compreender esta
relação: ele possui 5 alqueires de terras de vargem e dez famílias colhem flores nesse
terreno. Estas famílias não pedem permissão para colher e não pagam nenhum tipo de renda.
17 As sempre-vivas dividem-se principalmente em verdadeiras, botão de soldado, dourado, botão fofo e
arranha-nariz; a coleta vai de janeiro até março. Em 1999 o preço girou entre R$ 3,00 a R$ 5,00 por quilo.
Questionado se qualquer pessoa poderia colher flores neste terreno, José responde que "só
pode o pessoal da comunidade e o tanto de família que a terra comporta" e a comunidade
mesma zela para que isto aconteça. Esta foi a mesma resposta que ele deu quando indagado
sobre quem poderia usar as soltas.
Nos casos dos recursos como madeiras de lei, áreas de garimpo e reservas de água,
os códigos são mais rígidos e apurados. São recursos quase privativos de uma família. No
que diz respeito às madeiras de cerne, há clara demarcação das árvores para cada família e
às vezes para cada membro dentro da família. Os lavradores do ribeirão Soberbo revelam:
"A madeira é mais exigente porque mais de uma pessoa pode ter o cálculo de usar um
mesmo pau". Assim para tirar madeira, tem que respeitar os limites de cada família. Estes
não são demarcados com cercas e sim por acordos entre os lavradores, divididos por
restrições que são antes de tudo morais. Os limites são estabelecidos por códigos
comunitários de regulação dos recursos e não por direito de propriedade.
No correr de gerações, vários acordos foram tecidos entre as famílias lavradoras do
alto Jequitinhonha, normatizando o uso da terra e recursos naturais, formando uma trama
social complexa e plena de reciprocidade entre si e delas com o meio. Os lavradores
organizaram seu sistema produtivo, com base em zonas de recursos diferentes e articuladas
entre si. A terra é sempre, em último instância, a reunião de ambientes distintos,
apresentando um movimento muito dinâmico. Mas a articulação dos ambientes necessários
para edificar esse sistema não é previamente dada. Ao contrário, às vezes, ocupa o prazo de
uma vida, e de muitos cálculos, trabalho, conflitos e negociação para ir ajuntando as partes,
e, ao final das contas, construir a terra necessária.
As composições das terras
A diversidade do ambiente, os espaços naturais com suas características distintas
demarcaram modos específicos de ocupação humana e produziram na sociedade rural do
alto Jequitinhonha formas diferentes de uso e apropriação dos terrenos. Mais que ajustes ao
meio, as formas de perceber e organizar espaço e ambiente, configuraram variados sistemas
de apropriação das terras.18
A posse da terra emerge como expressão de relações de uso e consequentemente de
trabalho: como o domínio do ambiente gerava ou impunha determinadas prescrições no que
18 Ribeiro (1993 e 1997) analisa a relação entre ambiente, técnica de lavoura, dinâmica populacional e domínio
da terra na região nordeste de Minas Gerais.
respeita à exploração agrícola, as culturas e grotas receberam utilização perene com
agricultura de pousio, diferentemente dos campos, carrascos e chapadas. As terras foram
sendo apropriadas de acordo com a utilização: privadas e rotativas nas manchas mais férteis
de cultura - nas grotas - comunitárias e extrativistas nas glebas de campo e carrasco, nas
chapadas. Na negociação estabelecida entre homens e natureza, os limites colocados por
esta fizeram com que fossem construídas formas específicas de apropriação dos terrenos que
se intercalam e misturam para compor o regime plural de terras da região: existem áreas de
uso comunitário, áreas de uso privado, áreas de uso privado e comunitário alternado.
As famílias de lavradores associaram a apropriação da terra à distribuição dos
recursos naturais19. Existem áreas usadas de forma privativa por uma família, como áreas de
lavouras em plena produção; há também outras glebas onde apropriação e usos são
comunitários, como é o caso dos soltas indivisas. Já em outros terrenos, existe alternância
sucessiva entre apropriação privada e comunitária, como nas parcelas que estão em pousio,
por exemplo: foram usadas de forma privada enquanto continham roça; postas em alqueive,
se transformam em capoeira e área de uso comum de coleta. Por fim, há outras parcelas que
são utilizadas de forma simultaneamente privada e comunitária: as vargens de sempre-viva
se enquadram neste caso: são áreas de apropriação privada, há famílias que são donas dessas
áreas, mas a exploração dos seus recursos naturais é realizada de forma comunitária; várias
famílias que pertencem à comunidade extraem flores nestas vargens, sem dever nenhuma
renda aos donos da gleba.
Há coexistência de usos que forma uma intrincada e ativa trama de direitos,
apropriações e posse. Essa trama quase impossibilita delimitar a área de terra de uma
família, porque esta depende de uma série de variáveis: tamanho da família, relação entre
quantidade de famílias e tamanho da terra disponível, recursos naturais, pressão
demográfica e sistemas de posse da terra sancionados comunitariamente. A área de uso de
uma família é fluida, ancorada em código e consenso comunitário; busca a composição de
ambientes diversos e apresenta uma grande mobilidade variando no tempo e espaço.
O que se percebe é que os dons dispostos pela natureza, como flores, madeiras,
fontes d'água, frutos, garimpo, plantas medicinais etc, essas dádivas que existem sem
intervenção humana direta, não podem ser concentradas e privatizadas numa única família.
A terra, a base física, pode ter dono, mas as ofertas da natureza, não. Neste sentido há uma
19 Boserup (1987) e Ribeiro e Galizoni (1995) analisam as coexistência de usos ambientais e suas relações com
a posse da terra.
dissociação entre terra e recurso ambiental; a primeira pode ser apropriada de forma
privada, mas o segundo, não. Apesar de poder ser explorado de forma privada, a sua
regulação responde a códigos que são comunitários. Há diferenças, então, entre a
apropriação, que pode ser privada, e o uso que pode ser comunitário. Nas trocas
estabelecidas entre famílias e comunidades com a natureza, os dons que se reproduzem sem
a intervenção humana, os dons cuja existência não decorre da intervenção do trabalho
humano, não podem ser apropriados de forma exclusivamente privativa; podem, isto sim,
ser usados de forma privada.
Cada formação ambiental - cultura, catinga e campo - é classificação do meio
realizada pelas famílias, classificação que indica e qualifica usos dos terrenos. Esses usos
articulam-se com procedimentos sociais, construindo formas diferenciadas de apropriação
da terra. Mas, em boa parte do alto Jequitinhonha, uso, apropriação e propriedade da terra
são esferas sociais e ambientais que, se em determinados momentos espelham um único
processo, em outros - que na região são maioria - significam campos distintos na relação de
famílias e comunidade com a terra.
Os esforços familiares e comunitários de ajuste ao meio, que vem ocorrendo nessa
região há pelo menos 200 anos, construíram conjuntamente formas de domínio e
apropriação da terra e natureza. Observando-se o resultado dessas negociações percebe-se
que posse e domínio da terra estão indissoluvelmente ligados ao ambiente e seu uso. E os
usos da terra estão relacionados, de forma impossível de se deslindar, à constituição do
grupo social. Há cadeias de relações que unem lavradores - em termos de parentesco - com
o sistema de posse de terra, constituindo culturalmente o lugar ocupado pelas famílias sobre
a terra e os diferentes direitos associados aos vários usos.
Neste sentido, é extremamente difícil separar os vários direitos sobre a terra, porque
dependendo do período do ano, da atividade e uso do terreno, pode-se encontrar um direito
específico em questão. Desta forma, em uma terra pode haver vários direitos que convivem
e se sobrepõem. Para compreender essas camadas de direitos, é necessário que o ponto de
partida do olhar seja comunidade e não família, e uma comunidade que, antes de tudo, é
comunidade de parentesco. O terreno familiar é sempre relacional ao conjunto das famílias;
não é um terreno que exista isoladamente, mas sempre em relação à disposição das outras
famílias sobre a terra.
Da mesma forma que há camadas de direitos que se sobrepõem, há também camadas
de normas que se combinam para regular as diferentes formas de domínio sobre a terra e a
natureza. Ocorre que, sobre o mesmo solo, famílias diferentes tenham direito também
diferentes de uso dos recursos, de posse e de apropriação da terra. Um grupo familiar
combina, geralmente, glebas de terras de uso em comum e outras de apropriação privativa
de uma família; entretanto, isto não exclui esta última de obrigações comunitárias: a
existência da posse familiar é restringida e subordinada aos direitos comunitários. Estes são
os direitos de exploração dos recursos da natureza. As famílias são donas, plenamente,
apenas dos frutos de seu trabalho, da lavoura, e somente neste sentido as terras de trabalho,
as culturas, podem ser objeto de apropriação individual. Mas os recursos da natureza - as
dádivas - são disponibilizados a todos os membros da comunidade, mas só para eles.
A posse da terra: trabalho
As sobreposições ou apartações dos significados de apropriação, uso ou posse da
terra, o jogo e a trama entre essas formas de relação com a terra, são elucidativas para
compreender os sujeitos sociais que se constróem nos regimes agrários da região, que se
constituem em torno de um mesmo eixo: o trabalho concretizado na terra. Estabelecido esse
eixo central, podem-se observar algumas nuanças nas formas de acesso à terra, nos direitos
e sujeitos sociais decorrentes. Primeiramente é necessário diferenciar, para efeito de análise,
dois viéses de direito de trabalho sobre a terra. Um é o de quem tem a posse da terra,
designado na região por dono, posseiro, herdeiro ou proprietário. O outro é o de quem usa a
terra: é o agregado e o meeiro incluindo nesta categoria todas as suas variações, ou seja,
quem planta pagando a terça ou a quarta parte da colheita. Essas categorias que podem ser
apartadas analiticamente, na prática estão imbricadas, coexistindo, às vezes, em uma mesma
família e sobre uma mesma fração de terra: sendo diferentes em suas naturezas, são ao
mesmo tempo respeitadas mutuamente.
O trabalho humano modificando a natureza, estabelecendo espaços de controle e
produção sobre o ambiente, constrói formas distintas de uso, apropriação e posse. É comum
ouvir na região que a terra que não está sendo trabalhada por ninguém está "perdida". É
neste sentido que as terras vazias de trabalho - os campos - revelam regimes de apropriação
distintos das terras de trabalho - as culturas e catingas.
O espaço se modifica à medida que é trabalhado pelas famílias, e essa modificação
visível que resulta do esforço dos membros da família, demonstra que aquela posse é o
trabalho de uma família cravado na natureza. O processo de transformação da vegetação em
lavoura, mediado pela esforço da família, a produção do mantimento pelo trabalho e
negociação com a natureza, simbolicamente e na prática estabelecem a apropriação da terra.
Este é um movimento ampliado para toda a comunidade. Cada grupo familiar faz
seus cálculos e lances. Não é um jogo solitário, possui um ritmo cadenciado em que o
deslocamento de um participante pressupõe o movimento dos outros, tecendo uma malha
que ora se distende, ora recua. Os movimentos de uma família na terra são sempre
relacionais ao de outras famílias da comunidade; seu exemplo mais visível são as
alternâncias dos terrenos para as lavouras familiares, que promovem uma rotação
seqüenciada, mas nem sempre são movimentos harmônicos: há colisões de rotas. Estas são
expressas, principalmente, nos conflitos por áreas de palhada da roça.
O histórico da terra nas comunidades do alto Jequitinhonha revela estratégias
rigorosas, um cálculo alongado, pacientemente elaborado e, mais do que indicar um
comércio, demonstra um "jogo" entre herdeiros, vizinhos, familiares e compadres. O caso de
Geraldo, da comunidade do Cabra, município de Botumirim, o demonstra. O pai de Geraldo
comprou uma gleba de terra, mas esta era pequena para ocupar todos os filhos. Geraldo não
recebeu terra. Saiu do terreno paterno e posseou uma gleba próxima à terra de sua família,
de um senhor já falecido. Ninguém reclamou este direito de posse. A esposa de Geraldo
recebeu terra de herança, junto com mais sete herdeiros, que usam esse terreno em comum.
Geraldo também trabalha no direito da cunhada - irmã de sua esposa - que está morando em
Guariba (S.P.); não paga nenhum tipo de renda para a cunhada, cuida do terreno e trabalha
para si. Geraldo trabalha então em três terras distintas: na sua posse, no direito da mulher e
no direito da cunhada. As relações que ele estabelece com a terra demonstram uma grande
mobilidade: não recebeu herança, posseou um pedaço de terra, cuida da herança da esposa
que está em comum com mais sete herdeiros, e além disso "olha" a terra da cunhada que
mora há anos em São Paulo, garantindo a posse dela e, no caso dela não voltar, construindo
mais uma posse para sua família.
Terra no Bolo
Esta trama intricada entre família, ambiente e posse da terra, cria um regime agrário
muito específico: a terra no bolo. Uma lavradora do município de Cristália dá a seguinte
definição de terra no bolo: "É um terreno só e todo mundo mora nele. Só tem divisão das
mangas, das roças, das casas, cada um tem seu arame. A terra é tudo junto, o resto é tudo
separado". São glebas familiares, que se compõem por formas variadas de uso, apropriações
e domínios, privadas ou comunitárias. Esse regime cria sobre a terra camadas de direitos,
entre as famílias e no interior da família, que convivem.
É uma terra indivisa no interior de uma família extensa. Os membros da família que
residem na gleba possuem o usufruto da terra e dos recursos da natureza, mas dos quais
muitas outras pessoas são donas também: todos os parentes consangüíneos têm, idealmente,
acesso à terra; mas a regência cabe a poucos. Os direitos de membros da família consiste,
essencialmente, no direito de participação do uso da terra familiar.
Esta característica - no bolo - é constante no regime de terras, porque a maioria das
terras da região é adquirida por herança. Mas, além desse significado, traz em si a
concepção de que a legitimidade de uma posse é fluida, respeitada e mantida, enquanto a
família deposita nela trabalho. A ausência deste pode significar a reincorporação daquela
gleba ao estoque de terras da comunidade e a posse por outros segmentos pertencentes ao
grupo familiar extenso que a constitui.
Terra no bolo, de acordo com os lavradores, dá muito problema para separar. Seria
necessário fazer o inventário de várias gerações e de suas trajetórias. Como são famílias
grandes, casadas entre si, se torna uma tarefa hercúlea. Mas, a principal razão para manter a
terra no bolo, é pensar que o sujeito de acesso à terra não é um indivíduo, mas um grupo
social representado pela família. A terra não é de um indivíduo, mas sim da família,
entendendo, neste termo, um grupo de parentesco, em que as famílias nucleares são uma de
suas faces. Assim, o regime de terra no bolo faz a terra crescer: os lavradores que estão
trabalhando na terra ocupam as glebas deles próprios e a parte de quem saiu, migrou. No seu
sistema de lavoura o lavrador necessita de se movimentar na terra, alternando pousio e
lavoura; a possibilidade de usar a terra indivisa em comum acordo com os outros herdeiros é
imprescindível para que esse sistema funcione. A terra no bolo é uma forma de manter uma
terra no patamar mínimo de tamanho para que uma parte da família possa permanecer e
produzir.
Família, ambiente e terra formam uma urdidura indissociável. Mais que o local da
produção, terra é o locus de reprodução da família, das suas junções, separações e
interseções; que nunca pode ser apartada da terra.
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