FÉ CEGA, FACA AMOLADA
Ódio gera ódio e escolhe seus alvos a esmo. Contra o radicalismo dos crimes cometidos em nome da religião, a única arma deve ser um exercício radical de tolerância.
Por André Santoro. Revistas das Religiões, ed. 15, nov.2004, p.30-35.
Fanático, de acordo com o dicionário Aurélio, é aquele que: “1) se considera inspirado por uma divindade, pelo espírito divino; iluminado; 2) tem zelo religioso cego, excessivo; intolerante; 3) adere cegamente a uma doutrina, a um partido; é partidários exaltado; faccioso; 4) tem dedicação, admiração ou amor exaltado a alguém ou algo; entusiasmo, apaixonado”. No português, a palavra geralmente é usada em tom negativo. Mas a raiz latina do vocábulo esconde um sentido mais amplo, que vem do latim fanaticus, uma variação de fanum, que significa templo ou lugar consagrado. “O fanaticus era aquele que freqüentava o fanum”, diz José Rodrigues Seabra Filho, especialista em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo.
A etimologia joga um facho de luz sobre a palavra que é pronunciada à exaustão em nossos dias. Fanático não é só o homem-bomba que, por algum motivo obscuro, abre mão da própria vida par ceifar outras tantas. Nem apenas o terrorista que, na esperança de alcançar o Paraíso, joga um avião contra um prédio. De acordo com o psicanalista Raymundo de Lima, professor da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, o fanático – não apenas o religioso – pode ser detectado com base em alguns sintomas, como a certeza de ser portador de uma verdade inquestionável, a tentativa de imposição tirânica desta mesma verdade, cuja importância ultrapassaria o instinto de preservação da própria vida, e isolamento do grupo.
Qualquer semelhança com uma crença que extrapola os limites da fé e descamba para a fúria cega contra o próximo não é mera coincidência. As religiões, aliás, sempre estiveram associadas a algum grau de fanatismo, por um motivo simples: elas só se mantêm graças à partilha dos mesmos valores por uma determinada comunidade. É claro que os métodos de persuasão variam bastante, o que significa dizer que nem todos os religiosos são fanáticos, no sentido pejorativo da palavra. “Mas a sensação da certeza proporcionada pelas religiões abre espaço para a violência, mesmo que seja em nome da paz”, afirma o filósofo Luiz Felipe Ponde, da PUC de São Paulo.
MEDO DO NOVO
A violência é um elemento que não pode ser dissociado da natureza humana. Quando o homem começou a manifestar suas crenças em sistemas mais ou menos organizados, essa agressividade visceral passou a ser aliviada por uma válvula de escape: o ritual do sacrifício. A teoria acima, elaborada pelo antropólogo francês René Girard, é uma explicação possível para os atos de crueldade promovidos por alguns indivíduos que se dizem iluminados. Os sacrifícios, que podem resultar no derramamento de sangue de um animal ou de uma multidão de pessoas inocentes, aplacariam a ira divina e fariam girar a roda da fé.
O pensador justifica sua visão de que a violência, longe de ser um simples efeito colateral, pode ser uma necessidade interna das religiões. E busca as possíveis origens desse instinto de destruição no Antigo Testamento. “Talvez seja este, entre outros, o significado da história de Caim e Abel. Caim cultiva a terra e oferece a Deus os frutos de sua colheita. Abel é um pastor e sacrifica os primogênitos de seu rebanho. Um dos irmãos mata o outro – justamente o que não dispõe deste artifício contra a violência”, escreveu Girard em seu livro A Violência e O Sagrado.
Em geral, a prática religiosa é permeada por atitudes positivas: o exercício da caridade, a pregação do diálogo e do respeito ao outro, a valorização da ética, a celebração da partilha, entre outras. No entanto, todo credo baseia-se em algum tipo de restrição ideológica. “Um dos pilares da construção religiosa é a crença coletiva em certos valores”, diz o pesquisador César Vinícius Ornelas, da PUC de São Paulo, que prepara uma tese de doutorado sobre fundamentalismo religioso. O pensamento, ao extremo, é mais ou menos assim: se eu creio na verdade e este é o caminho correto, o outro – que não segue minha doutrina – só pode estar errado.
É claro que, mesmo com a adesão do grupo a princípios comuns, a fé pode andar longe das atitudes radicais. “A religiosidade pressupõe uma experiência existencial e a busca de um sentido ético para a vida. Mas o sagrado e o profano são os dois lados necessários da vida. Quando tudo se concentra no templo, há o risco do fanatismo”, afirma o rabino Alexandre Leone, da Congregação Israelita Paulista.
VOLTA ÀS RAÍZES
A tentativa de compreender o mundo exclusivamente através do prisma da religião pode desencadear um processo de limitação das liberdades individuais. E costuma surgir como resposta a alguma ameaça externa. Em meados do século 19, alguns seguidores do Protestantismo norte-americano passaram a se sentir ameaçados pelo impulso de mudança que tomava conta da sociedade. Em oposição aos protestante mais liberais, eles começaram a defender uma interpretação literal da Bíblia – ou, na visão da época, um retorno aos fundamentos do Cristianismo. Em 1915, um grupo de professores de Teologia da universidade de Princeton publicou uma coleção intitulada Fundamentals: A Testimony of the Truth (Fundamentos: Um Testemunho da Verdade, inédito no Brasil). A partir de então, os seguidores desse novo Protestantismo passaram a se denominar fundamentalistas.
O termo que hoje rotula grupos extremistas islâmicos e seguidores de seitas apocalípticas, entre outros, nasceu como uma reação à modernização. “Não só modernização tecnológica, mas modernização dos espíritos, do liberalismo, da liberdade das opiniões, contrastando fundamentalmente com a seguridade que a fé cristã oferecia”, escreveu o teólogo Leonardo Boff em seu livro Fundamentalismo: a Globalização e o Futuro da Humanidade. Ser fundamentalista de acordo com Boff, “é assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da História, que obriga a contínuas interpretações a atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial”.
O próprio fundamentalismo religioso pode ser interpretado de forma positiva, desde que deixemos de lado as conseqüências mais sangrentas da interpretação inflexível dos mandamentos religiosos. “Quanto mais vamos aos fundamentos do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo, mais encontramos a dimensão libertária, o cuidado para com os pobres, o respeito para com todas as pessoas e a veneração para com a natureza”, afirma Leonardo Boff. Encarada desta forma, a busca pelas raízes das religiões pode ter uma causa nobre e humanista. Nem todo comportamento fundamentalista, portanto, é baseado em mecanismos de intolerância e intransigência. Um exemplo seria a Teologia da Libertação, que retoma as bases do Cristianismo para promover atitudes humanistas e democráticas.
Apesar de representar uma interpretação rígida de alguma doutrina, o fundamentalismo não dever ser confundido com ortodoxia. “Cada religião baseia-se em um cerne dogmático de crenças. Às vezes, existe uma autoridade, como a do papa ou da Congregação Romana, que determina que interpretações desviam-se desse dogma e, portanto, da ortodoxia”, escreveu o filósofo Jürgen Habermas no livro Filosofia em Tempo de Terror. O ortodoxo defende a preservação da doutrina, mas não é, necessariamente, fechado ao diálogo. E, acima de tudo, goza de boa reputação entre seus pares, algo que não costuma acontecer com grupos fanáticos. “A maioria dos seguidores do Islamismo, Cristianismo, Judaísmo, Budismo, Sikhismo e Hinduísmo considera que os fundamentalistas são uma minoria irresponsável”, afirma o historiador Robert Scott Appleby em The Ambivalency of the Sacred (A Ambivalência do Sagrado, sem tradução para o português).
Muito antes dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, seguidores de diferentes religiões já experimentaram algum tipo de fundamentalismo. “Ele não se limita aos grandes monoteísmos. Ocorre também entre budistas, hinduístas e até confucionistas quando rejeitam muitas da conquistas da cultura liberal, lutam e matam em nome da religião e se empenham em inserir o sagrado no campo da política e da causa nacional”, escreveu a teóloga e ex-freira católica Karen Armstrong na obra Em nome de Deus.
Apesar de ter surgido oficialmente no século 19, a busca pelos fundamentos religiosos é um fenômeno que ganhou força nas últimas duas décadas, especialmente após a queda do Muro de Berlim. Os discursos ideológicos, que se apoiavam num mundo polarizado entre duas grandes forças políticas, perderam terreno para as justificativas religiosas. Hoje, matar em nome de um regime de governo tornou-se tão menos contuntende – e freqüente – quanto cometer crimes usando a fé como pretexto.
INTOLERÂNCIA EM NOME DA PAZ
Na manhã do dia 20 de março de 1995, membros de uma seita japonesa espalharam o venenoso gás sarin dentro de vagões superlotados do metrô de Tóquio. O ataque matou 12 pessoas, intoxicou milhares de passageiros e foi atribuído ao movimento de cunho terrorista Aun Shinrikyo (A Verdade Suprema). O líder da seita, Shoko Asahara, apresentava-se como um messias e prometia uma batalha do fim dos tempos que lhe proporcionaria o domínio do Japão e do mundo.
Além da matança indiscriminada, o que mais assustou foi o fato de a seita basear-se em princípios de várias doutrinas que pregam a paz e a tolerância, como o Budismo japonês, o Budismo tibetano e o Hinduísmo. “O fato de o Japão ter dado as costas à sua espiritualidade tradicional e ter adotado uma mentalidade francamente materialista, para não dizer hostil à religião, ajudou a tornar a juventude japonesa extremamente vulnerável a esse tipo de movimento”, afirma o reverendo Ricardo Mário Gonçalves, do Instituto Budista de Estudos Missionários, em São Paulo.
Na linha budista japonesa, os movimentos de retorno aos fundamentos da doutrina surgiram no século 19 – assim como no Protestantismo norte-americano – como reação ao processo de modernização pelo qual passava a sociedade japonesa. “Existe fundamentalismo no Budismo, como em todas as grandes religiões”, afirma o reverendo Ricardo. E suas principais características, de acordo com ele, são a simplificação extrema da doutrina para a solução de problemas materiais imediatos, o uso de técnicas agressivas de propaganda para massificar a religião e a adoção de posições políticas conservadoras, desencorajando atitudes críticas frente aos problemas sociais.
ORIGENS DO TERROR ISLÂMICO
Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos passaram a ser vistos com desconfiança pelo mundo ocidental. O simples fato de ostentar um nome árabe tirou o sossego de muitos viajantes que desejavam entrar em países cristãos, especialmente nos Estado Unidos. Muito já se falou sobre as passagens belicosas do Corão. “Matai os idólatras, onde quer que os acheis; capturai-os, acossai-os e espreitai-os”, diz um trecho do livro sagrado do Islamismo. Por outro lado, várias passagens pregam a alternativa da paz e do diálogo. Matar um inocente, com base nessa visão, seria o equivalente a matar a humanidade. Mas, afinal, o Islã pode ser usado como justificativa para atos de terror? O historiador Bernard Lewis oferece uma possível resposta a esta questão. A violência promovida atualmente por alguns grupos islâmicos, de acordo com o pesquisador, seria a reedição de atos sangrentos praticados por uma seita de radicais surgida no Irã no século 10. A luta dos “Assassinos”, como eram chamados, tinha como objetivo final a restauração da unidade do Islã, que havia sido abalada pela morte do profeta Muhammad. Como muitos terroristas de hoje, eles também eram treinados para matar e morrer, na esperança de alcançar o Paraíso e todas as suas benesses.
Apesar do valor histórico de sua pesquisa, o próprio Bernard Lewis faz uma advertência: os Assassinos tinham características fundamentalistas e foram, talvez, o primeiro grande movimento de intolerância dentro do Islã. “Mas eles não inventaram o assassinato, apenas emprestaram dele o nome. O homicídio, tal como é, é tão antigo quanto a raça humana”, afirma o escritor em seu livro Os Assassinos: Os Primórdios do Terrorismo no Islã.
PERSPECTIVAS
Todos os dias somos bombardeados com notícias sobre novos atentados em tradicionais zonas de conflito. Repetindo o eterno ciclo de violências que se arrasta desde as cruzadas, quando cristãos e muçulmanos digladiavam-se, facções religiosas pregam o ódio mútuo – muitas vezes com a ajuda dos meios de coerção de seus próprios Estados – como forma de defender seus dogmas. Em Israel, grupos judaicos fundamentalistas pleiteiam um Estado regido pelas leis da Tora em vez de um sistema de governo laico. Segundo o rabino Alexandre Leone, por conta do apego desses grupos às próprias crenças, eles abominam qualquer tipo de manifestação religiosa não judaica. A mesma lógica – de defesa dos fundamentos de sua fé – permeia os ataques de fiéis evangélicos a cultos afros no Brasil. O argumento é de que esses fiéis se sentiriam ameaçados pelos rituais praticados no Candomblé e na Umbanda, que, na visão deles, estariam associados a obras do demônio e iriam contra a vontade de Deus.
Talvez ainda sejamos obrigados a conviver com a rotina diária da religião a serviço do ódio – ou vice-versa – durante um bom tempo. Há saída para o ciclo de intolerância dentro do qual a humanidade se encontra há vários milênios, mas o caminho não é dos mais fáceis. “Ao terrorismo devemos responder com ações de justiça social em nível mundial, com relações mais equânimes, com formas de inclusão e de diálogo com todas as culturas”, afirma Leonardo Boff. Utópico? Talvez. “A pergunta que fica, dentre muitas outras, é se é possível resgatar o passado sem aniquilar o futuro. Podemos lidar com a tradição sem violentar o presente?”, afirma César Ornelas. Cabe a nós encontrar as respostas. Sem demora.
Atividade referente ao texto
1°) Leitura do texto "Fé cega, faca amolada";
2°) Exponha casos que envolvam desrespeito e/ou intolerância religiosa;
3°) Associe esses casos com o texto e nossos conhecimentos até aqui.
Veja um exemplo:
Caso: novembro de 2003, foram expostos no lago do Parque Vaca Brava oito estátuas gigantes de Orixás africanos. Várias manifestações contra elas foram registradas, inclusive com danos materiais para as mesmas. Isso pode ser relacionado com o texto? Como? Depois escreva o caso que conhece.
A atividade vale 10 pontos para a N2 + frequência do dia 29/05