O outono do antropólogo. Otávio Velho
O outono do antropólogo. Otávio Velho. In:
http://www.sitiodarosadosventos.com.br/antropologo2b.html
IR “LÁ”, CRIAR UM LUGAR, VIVER UMA VIDA, ENSINAR UMA HISTÓRIA
Algumas idéias em rascunho sobre os imaginários do “interior”
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a for a e dentro, eles dizem. Fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima.
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos.
O senhor sabe, pão ou pães é questão de opiniães … O sertão está por toda a parte.
João Guimarães Rosa
momentos de Grande Sertão, Veredas
da beira do mar ao interior
Nasci na beira do mar. Nasci, imaginem, em Copacabana, no “posto dois-e-meio”, pois era assim que se assinalavam os lugares de nascer e de viver, entre os seis postos da praia, ao longo da Avenida Atlântica. Tal como tantos meninos do “eu tempo”, fui dessas crianças acostumadas ao asfalto e à areia do mar e não era difícil passar de um para a outra, quase todos os dias. Tal como os “da minha turma”, aprendi mais ou menos a andar em casa e, não muito depois, a nadar nas beiras da praia. Ainda não haviam trazido de longe o surfe. Mas apreendíamos cedo a navegar em pequenas “tábuas de jacaré”, desvendando junto com as primeiras letras da escola os segredos das ondas do mar do Rio de Janeiro. Nunca fui um especialista em “pegar jacaré”, mas também nunca fui propriamente um “ruim de serviço” nesses ofícios de nossas manhãs de sol.
No entanto, curioso que possa ser, os meus sonhos de menino e de adolescente, recordados hoje, na beira do outono da vida, não são tanto os de Copacabana, das praias e do mar azul e verde, azul e infinito, para além do Farol da Ilha Rasa, cujas luzes de três brilhos foram por anos uma das maravilhas de minha infância. Minhas recordações mais vivas sã ode outros lugares, menos marinhos, mais interiores. Sim, pois elas são de alguns lugares dos meus primeiros “interiores”. Pois para quem viveu como eu, na beira do litoral, ele acaba sendo um território de onde se é, ou até onde se chega. Mas o interior, ao contrário, é sempre um misterioso lugar até onde se vai, às vezes para voltar, outras vezes, para nunca mais. Aprendi mais tarde imaginar que isso acontece com todo o mundo (a menos que você seja um nativo do “interior” e um dia tenha chegado “ao mar”). E aos poucos aprendi a pensar que esta seria uma idéia verdadeira também no imaginário das culturas que existem a meio caminho entre um cenário e o outro.
Meus primeiros “interiores” foram próximos. Um pequeno sítio no “pé da serra”, entre o Rio de Janeiro e Petrópolis, algumas raras cenas quase apagadas de Terezópolis – onde anos depois eu viria a praticar algumas das escaladas mais inesquecíveis em minha vida – e, mais do que tudo, Itatiaia, entre a estrada que liga o Rio a São Paulo e as montanhas mais altas da Serra da Mantiqueira. Este foi um primeiro “mundo do interior” ainda regido por uma visão de campo vista desde a cidade. Pois os lugares eram mais propriamente turísticos do que rurais e eu precisei esperar mais alguns anos para conhecer de perto a “gente da roça” dos sertões próximos de Minas Gerais e, mais tarde, de Goiás. Pois foi quando eu já era um adolescente que me levaram pela primeira vez ao Sul de Minas Gerais. Ali visitei fazendas e sítios com um tio querido, irmão de minha mãe, agrônomo. Então eu vi pela primeira vez o “interior do Brasil” sem os disfarces com que a vocação do turismo reveste as pessoas e os lugares, com o desejo de torná-los absolutamente peculiares, acaba tornado-as todos mais ou menos iguais.
Anos mais tarde, já nos sessenta e logo após o Golpe Militar eu viajei pela primeira vez ao Planalto Central. Fui. Também por uma primeira vez, a trabalho, como um emissário do Movimento de Educação de Base. Em uma semana vi e vivi mais do “interior camponês” do que conheceram antes em toda a minha vida até então. Em uma mesma tarde noite ouvi e vi representarem diante de nós um “arremedo” de Folia de Santos Reis e um outro, de “traição” (dita também “treição” ) de um mutirão entre lavradores de arroz, milho e feijão. Devo Ter ficado espantado, encantado. Pois ano e meio depois vim a casa com “moça do lugar” e a viver entre Brasília e Goiás durante 9 anos, até quando vim de mudança para Campinas.
Hoje em dia divido as minhas semanas entre esta cidade, o Sul de Minas, Goiás, para onde tenho voltado todos os meses em nome de um retorno – 35 anos depois – à Universidade Federal de Goiás – Piracicaba, onde inicio um trabalho junto ao Departamento de Ciências Florestais da ESALQ/USP e outros cantos e recantos de vários interiores e raras beiras de mar. Pois mesmo ao Rio de Janeiro não retorno mais do que uma ou duas vezes a cada ano. Desde que saí de minha cidade natal vivi em 12 outras, aqui no Brasil e um pouco mais ao Norte e a Leste. Mas nunca mais em alguma cidade do litoral. Posso ser, portanto, depois de mais de 34 anos, apontado como uma legítima assumida vocação “de interior”. Existe mesmo entre nós uma expressão qualificadora: “interiorano”. Pois eu que resolvi um dia – cedo e tarde em minha vida – sair da cidade litorânea para outras, sempre mais a oeste, mais no interior, quero me reconhecer aqui como isto: “um alguém do interior”. Alguém que saiu e foi … e chegou “lá”.
Interior, interiores, uma primeira aproximação
Mas onde é este “lá”?
Nunca mais esqueci o elogio que um professor da PUC de São Paulo me disse em algum dia de março de 1976, quando nos encontramos e eu comuniquei a ele que havia me transferido da Universidade Federal de Goiás para a UNICAMP e de Goiânia para Campinas. Ele me ouviu e respondeu: “uma boa escolha, das cidades do interior Campinas é a melhor”.
Ora, para quem como eu estava acostumado a imaginar o “interior” como qualquer território muito longe da beira do mar e muito próximo das lonjuras sem-fim dos sertões de João Guimarães Rosa, a imagem me pareceu estranha. Mas em pouco tempo aprendi que ela era real. Afinal, para o senso comum e não tão distante dos documentos oficiais, o Estado de São Paulo possui uma capital pensada como um centro absoluto para onde tudo converge; uma região de cidades e de espaços naturais “do litoral”, de que Santos é a grande metrópole; e um “interior”, onde cabe tudo o que não está na beira-do-mar e nem dentro ou, no limite, ao redor da “Grande São Paulo”. Campinas, metrópole interiorana, era a “capital do primeiro Oeste Paulista”, após a vertiginosa expansão do café. Da mesma maneira como Ribeirão Preto veio a ser, anos mais tarde, a “capital do segundo Oeste Paulista”.
Duas imagens do passado fariam um bom sentido aqui.
A primeira. No caso de São Paulo, há uma curiosa inversão do locus natural, social e simbólico do sertão. Por algum tempo ele acompanha uma tendência nacional, e se localiza a Oeste da Costa do País, nas lonjuras mais além da Serra do Mar e da Serra da Mantiqueira. O sertão são imensidões de terras vistas como “vazias e inóspitas”, já precariamente “conquistadas” ou “a conquistar”, a Oeste de Campinas e em direção a Minas Gerais, a Goiás e a Mato Grosso. Mais tarde a direção do sertão em São Paulo se inverte, ela passa a denotar as terras não tão distantes da própria São Paulo, dominadas ainda pela Mata Atlântica e tomadas a Leste da capital, entre a Serra do Mar e o Litoral de São Paulo[1]. Quando estive por cerca de cinco anos realizando pesquisas de campo na região do Alto Paraíba em São Paulo, entre a Serra do Mar e o Litoral, no município de São Luís do Paraitinga, tanto na cidade quanto no distrito de Catuçaba (sede de minha pesquisa) e nos bairros rurais, as pessoas apontavam os ermos das florestas da Serra do Mar como “o sertão”. Nomes como “Sertão do Paraitinga” ou “Sertão do Palmital” eram qualificadores comuns[2].
A segunda. Certa feita vi no Instituto Sócioambiental, em São Paulo, uma cópia do que me foi apresentado como o “primeiro atlas brasileiro”. Era uma cópia de um livro publicado durante a gestão imperial de Pedro II e, no mapa da Província de São Paulo estampava cidades e vilas até mais ou menos Araraquara. Mais além dela havia um grande vazio de nomes e referências, acompanhado da seguinte informação: “território dos gentios bravios”. Lembro que vária música sertanejas, não tão antigas assim, relembram ainda entre os seus versos as “batalhas” travadas pelos sertanejos pioneiros na “conquista dos interiores” de São Paulo e os “bugres”. A conhecida música “o Sertão do Laranjinha” é um bom exemplo.
A um olhar voltado ao passado, uma quase “civilização caipira” recobre quase todo o interior de São Paulo, de Minas Gerais e do Paraná, para ficarmos entre estados próximos. Maria Isaura Pereira de Queiroz a vê por:
… todo o litoral paulista (onde o caiçara é sempre um caipira); o Vale do Paraíba, as serras da Mantiqueira, de Quebra Cangalha, do Mar, de Paranapiacaba; o planalto paulista; a zona bragantina; a "depressão periférica paulista"” isto é, a zona de transição entre os solos arqueanos e os solos paleozóicos, principalmente ao longo do rio Tietê (englobando a zona de Piracicaba, dos Campos Gerais etc), a zona do antigo “Caminho do Mato”, que levava ao Sul do país e por onde vinham as tropas de muares para serem vendidas na feira de Sorocaba; o planalto de Franca, caminho para as minas de Goiás e Mato Grosso[3].
Vistos desde a cidade e o litoral, os povoadores pioneiros dos “sertões de dentro”, dos múltiplos “interiores” do Brasil e, sobretudo, do Sudeste e Sul do País, ademais de carregarem toda a carga desqualificadora para a qual contribuíram, inclusive, viajantes como Saint-Hilaire, eram também uniformizados quanto às suas variações culturais e à importante variedade de seus modos de vida, inclusive no que eles têm a ver com alternativas de ocupação de territórios e de apropriação de recursos do meio ambiente. Ao mesmo tempo aventureiros, atrasados e ignorantes, os povoadores “caipiras”, ou os seus vizinhos próximos de Norte a Sul do interior do País, eram em geral vistos com um olhar de desconfiança. E este olhar desconfiado levou tempo para ser revisto. E nunca o foi inteiramente.
Ao contrário do “Litoral”, lugar aberto até onde se chega, aonde se vai, de onde se é, tudo o que é o “Interior” sugere o “sair e ir para”, o aventurar-se a”, o “conquistar”, “desbravar”. Conhecemos bem as oposições coloniais brasileiras entre uma civilização litorânea, sede do poder, da religião legítima, da vida erudita, logo, civilizada como um bom espelho da Metrópole do outro lado do mar, e o interior dos “sertões de dentro”, territórios do primitivo e do popular; terras de conquista; lugares vistos como “vazios”, porque não povoados ainda com os emissários do poder e do então incipiente capital mercantil. A menos que estes lugares “de dentro” ponham à mostra os objetos da maior cobiça entre os civilizados: o ouro e o diamante. Então o interior se abre a uma efêmera civilização trazida, entre mãos de escravos e sedas dos senhores, do Litoral: Ouro Preto, Cuiabá, Diamantina, Vila Boa de Goiás.
Convivemos, entre as nossas conversas de bar e as aulas das escolas, com uma visão ainda muito pobre a respeito dos cenários de natureza e de vida social do “interior”. E isto vale tanto para os “sertões” e os “gerais” de Goiás, da Bahia e de Minas Gerais, quanto para os “campos gerais” dos interiores do Paraná. Ao contrário do que a própria realidade sugerida pelos estudos de história, de geografia, de sociologia e de antropologia, muitas vezes temos ainda a tendência a imaginar ou a conceber as civilizações litorâneas como os lugares da multiplicidade étnica e da polissemia de e entre culturas. O seu oposto, isto é, o “mundo do interior”, seria a variedade monótona dos territórios das uniformes ou pouco variantes culturas “primitivas”, “rurais”, “rústicas”, “caipiras” e, no limite, “camponesas”.
Se algum dia foi assim, há muito tempo não é mais assim. No Rio Claro, livro aqui já citado, Warren Dean lembra que na conquista dos territórios do interior de São Paulo, as frentes expansionistas dos primeiros senhores das novas terras interpunham entre elas e os “selvagens bravios” franjas de lavradores caboclos, os que viriam a ser os primeiros “caipiras” dos sertões a Oeste.
Pouco tempo após a consolidação de terras roubadas aos indígenas para se transformarem em terras de monocultura mercantil ou em pequenos rendados de terras de sítios de policultura camponesa, já todo um interior do País era entrecortado, conflituado e habitado por: a) indígenas “bravios”, isto é, povos tribais ainda não submetidos ao colonizador e capazes de garantir em um território original ou apropriado posteriormente um modo d vida peculiar; b) indígenas “reduzidos” ou “aldeados”, “domesticados” ou “civilizados” (no que está incluído o haverem sido “convertidos” ao cristianismo católico, no mais das vezes), seja como indivíduos ou famílias isoladas em convivência direta com os senhores do mundo dos brancos, seja como aldeias e até mesmo tribos inteiras (ou o que sobrou delas) reunidos em “reduções” religiosas ou em aldeamentos da coroa portuguesa; c) indivíduos e grupos sociais representados por diferentes tipos de mestiçagem entre os colonizadores brancos e segmentos de povos indígenas, incorporados aos arraiais ou às cidades dos sertões, ou esparramados pelos territórios ainda livres ou já submetidos à lei das fazendas; d) indivíduos, famílias e grupos sociais de africanos ou de afrodescendentes reduzidos á escravidão e incorporados ao trabalho servil das fazendas, ao das áreas de mineração ou, em menor escala, aos serviços domésticos das cidades; e) comunidades de negros quilombolas ou de negros ex-escravos libertados e donos comunitários de terras doadas por algum ex-senhor[4]; f) indivíduos e famílias de descendentes mestiços de uniões entre negros escravos ou livres e brancos[5]; g) lavradores brancos, livres e, via de regra, pobres, como trabalhadores assalariados, trabalhadores parceiros, arrendatários (mais raros), meeiros, pequenos proprietários sitiantes, “biscateiros” e “cavuqueiros”, moradores de fazendas, de sítios, de povoados (vilas, freguesias, arraiais, patrimônios, currutelas, bairros rurais, aldeias - em geral quando antes foram aldeamentos indígenas - etc) ou nas cidades interioranas[6]; h) comunidades de colonos e, mais adiante, de pequenos e médios proprietários sitiantes estrangeiros (italianos, alemães, japoneses poloneses, ucranianos, russos, suíços, letões, espanhóis e, em menor escala, para o caso do interior rural, portugueses) chegados ao País entre meados e fins do século XII e habitantes, em sua maioria, de regiões interioranas do Sul do País, de São Paulo, do Espírito Santo e, em menor proporções, de outros territórios do interior do País, inclusive da Amazônia, com a chegada de pequenas levas tardias de imigrantes orientais; i) senhores donos de fazendas e de escravos e, mais tarde, de brancos pobres e mesmo de trabalhadores rurais estrangeiros; j) habitantes brancos, pobres, ricos e intermediários, das cidades, entre agentes do poder de estado, profissionais de diversas categorias de artes e ofícios e trabalhadores braçais.
O mundo rural do interior parece à distância incorporar muito poucas alternativas de especialização de trabalho profissional. Afinal, em um universo agropastoril dividido entre agricultores e criadores, o que mais pode haver? Nada mais ilusório. Lembro-me de que há muitos anos andei folheando um manual editado pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Ele inventariava as diferentes profissões e ocupações típicas do mundo rural brasileiro. Ora, entre o “abelheiro” e o “zagaeiro”, este quase-dicionário listava mais de duzentas ocupações profissionais possíveis. Isto significa uma diversidade densa de ofícios e de corpus de saberes de uma tecnologias e de ciências propriamente camponesas de uma desconhecida e desmesurada riqueza. Entre residentes fixos, ocupados com os ofícios do criatório e/ou da agricultura e os “oficiais” itinerantes, os mundos culturais do interior do País colocam quotidianamente em ação uma polissemia de modos culturais de realização de trabalhos produtivos, sociais e simbólicos raramente encontrados até mesmo em estudos especializados sobre sociedades e culturas camponesas do interior do Brasil.
Acho que este procedimento pode ser mais realista do que aqueles que tomam as dimensões mais propriamente das culturas tradicionais do interior do País como um parâmetro de qualificação de seus modos de vida e de suas visões de mundo. Acredito também que isto que se passa no domínio direto do exercício profissional de atividades associadas ao trabalho agropastoril, de mineração ou de outras modalidades de estrativismo, vale de igual maneira para outro campos e domínios da vida cultural interiorana. Vale para a complexidade dos sistemas tradicionais de organização e de significação das relações sociais, a começar pelas crenças, pelas gramáticas e pelas regras sociais do parentesco. Vale para toda a experiência, hoje tão mais complexa e dinamicamente diferenciada da vida religiosa. Vale para a criação de alternativas de comunicação com as culturas das/nas cidades.
Estamos acostumados a pensar as culturas rurais do Brasil como algo uniforme (regido pela não variação entre padrões) , tradicional (regido pela não inovação) e rústico (regido por um princípio elementar de criação, se comparada com tradições culturais urbanas e eruditas). Apenas em termos muito restritos esta visão pode ser verdadeira. Na verdade, mesmo em uma região geográfica restrita, como o interior de São Paulo ou o Sul de Minas Gerais, o que se dá a ver é uma extraordinária variedade de padrões de criação cultural. Uma variação de estilos e de alternativas de padrões de crenças, de culinárias, de tecnologias patrimoniais, de rituais e de celebrações religiosas ou profanas, de outras criações artísticas entre a música, a poesia e até mesmo formas dramáticas de representação, como numa “embaixada de congada”, numa “chegada de folia de santos reis” etc. Uma mesma “cultura caipira”, uma mesma “cultura camponesa” abriga variedades de expressão que se entrecruzam, que se fertilizam e que provocam transformações de parte a parte. Uma mesma pequena cidade e o seu entorno de bairros rurais e de sítios e de fazendas pode abrigar criações de culturas negras-camponesas, de culturas-brancas de tradição européia e, mais do que tudo, de experiência de criação cultural híbrida.
E não é apenas esta variedade de formas de presença humana através de diferentes origens e combinações étnicas, e através de diferentes criações de culturas interioranas o que nos deve chamar a atenção. Um olhar entre a história do cotidiano e a geografia dos modos de conquista e de inserção social em cenários naturais, deve lidar com uma diversificada multiplicidade de criação social de modos de vida a partir de alternativas de ocupação de espaços naturais e de sua transformação em um lugar social de um modo de vida. Na seqüência do parágrafo anterior de algum modo antecipo isto, ao listar os diversos cenários de relações sociedade-ambiente.
Ali estão as cidades grandes, médias e pequenas, divididas entre os pontos polares representados pelas comunidades culturais “paradas no tempo” e, no polo oposto, as comunidades francamente modernizadas. Ali estão as redes e as teias de presenças humanas e de relacionamentos que ora aproximam ora afastam aldeias de povos indígenas, “remanescentes de quilombos”, arraiais e povoados de brancos, negros e mestiços (também de indígenas, principalmente na Amazônia). Ali está a variação das formas de ocupação propriamente agropastoris, mas também as mineradoras ou dedicadas a outras alternativas de extrativismo: as terras de sitiantes tradicionais; as de produtores “farmer”, modernizados; as fazendas ainda abertas à presença de “moradores”, de “parceiros” e de “meeiros” pobres; as grandes e médias propriedades rurais tecnificadas e quase vazias de pessoas, dedicadas ao criatório de gado ou à monocultura da cana, da soja, do sorgo e de outros produtos de valor de mercado nacional (cana) ou internacional (todos os outros).
Essas diferenças, já moderadamente presentes no passado do interior de amplas áreas do Brasil, tornaram-se bastante mais marcadas nos dias de hoje. Tanto nas florestas do Acre quanto em regiões interioranas próximas a cidades metrópole, como o Rio de janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, etnias, culturas e modos de vida bastante peculiares se avizinham e convivem, entre momentos de conflito e tempos de alianças. Sabemos que apenas em alguns últimos bolsões uma antiga cultura caipira, tal como descrita por Cornélio Pires ou por Antônio Cândido. E as próprias transformações aceleradas nestes últimos anos, na passagem da música caipira para a sertaneja e desta para uma música para-sertaneja, country, ou o que seja, que invade com a maior parte dos horários das emissoras de rádio mais ouvidas inclusive na periferia das grandes cidades, tanto quanto praticamente todos os tempos dados à música nas “feiras de pecuária” e em festivais semelhantes, seria uma boa imagem do que se passa em todo o interior do Brasil.
O interior dado a quem chega
Quero fazer aqui um exercício do olhar um pouco diferente de tudo o que tenho visto e lido. De tudo o que eu mesmo tenho pensado, como um antropólogo interessado no estudo de culturas camponesas. Ao invés de aplicar uma espécie de “sociologia comparativa” dos estilos de vida e dos padrões de ocupação territorial através de alternativas diferenciais de trabalho produtivo e de criação de tipos de culturas interioranas, quero responder à seguinte pergunta: que tipos de cenários culturais são dados a quem chega e vê o mundo do “interior” do Brasil hoje em dia? Uma descrição assumidamente espontânea e muito pessoal deve ser lida aqui como um exercício em rascunho. Vejamos como.
Podemos imaginar as cidades, os povoados e as unidades propriamente rurais de vida e de trabalho como campos sociais que ocupam territórios, que transformam e re-tranformam espaços-cenários da natureza em lugares-contextos da cultura, ao mesmo tempo em que operam simbolicamente atribuindo sentidos e sistemas de preceitos a respeito de relacionamentos do tipo cultura-natureza, sociedade-ambiente e, claro, a respeito das diversas modalidades de reciprocidades entre pessoas e pessoas, entre pessoas e grupos sociais, entre grupos sociais e a própria sociedade. Os processos de trocas e os conteúdos de sentidos e de significados envolvidos nestas relações múltiplas e diferenciadamente interconectadas geram atributos do que quero chamar aqui uma tendência cultural de uma comunidade interiorana, de uma cidade de porte médio a uma configuração de unidades rurais de vida e de produção agropastoril á volta de um bairro rural ou de um conjunto articulado de assentamentos da Reforma Agrária. Eis como eu antecipo uma classificação destas vocações culturais.
Uma tendência tradição. Ela recobre as unidades de vida interiorana regidas por uma motivação à preservação dos estilos de cultura e dos modos sociais da vida quotidiana tão próximas quanto possível dos padrões reconhecidos como originais, como: “era assim que os nossos antepassados faziam”.
Mas, atenção! Esta tendência tradição tem sido com freqüência intencionada por dois lugares de culturas interioranas bem diferentes. Um deles é o lugar das culturas patrimoniais propriamente ditas. Pequenas comunidades rurais, não raro, cidades mesmo onde, “de dentro para fora” prevalece toda uma vocação á o de valores e costumes tradicionais. Um apego do desejo tornado modo cultural de ser e de viver cujos valores essenciais aparecem centrados sobre a reiteração de modelos arcaicos às vezes concentrados sobre uma esfera da vida social, como a experiência religiosa. Às vezes capazes de abarcarem até mesmo o todo de uma cultura e suas realização em um modo de vida social[7].
Em outra direção um mesmo apelo interiorano ao “típico” e ao “tradicional” deriva de uma opção intencionalmente vocacionada ao turismo e a atividades culturais incentivadas por ele e seus derivados. É quando toda uma cidade se volta, como uma ação não raro dirigida ou incentivada pelo poder público municipal, a um “retorno programado” a algumas tradições visíveis e negociáveis, postas na vitrine da vida quotidiana.
Uma tendência-modernização quase paralela, por oposição, à primeira tendência. A região de interior, o município, a cidade ou toda uma área rural opta – ou é forçada a isto por fatores externos não-controláveis - por um caminho de modernização em todos os planos das atividades socioculturais básicas, a começar pela opção de uma modernização das atividades econômicas do contexto urbanos (empresas e fábricas) ou propriamente rural, a começar pela implantação de unidades de agroindústria moderna e francamente dirigida a uma economia de mercado.
Não raro fatores conjugados, como a transferência de capital empresarial, a abertura de complexos de modernização da vida cultural, a implantação de faculdades ou mesmo de universidades particulares locais, a abertura do mercado simbólico dos serviços e bens religiosos a várias alternativas de adesão, a chegada de um número crescente de migrantes-modernizadores força uma atualização antecipada de modos de vida e de padrões de cultura. É então quando os planos e domínios mais propriamente “tradicionais” de alguma sub-cultura local (a dos negros, dos camponeses migrados para a cidade, de algum grupo étnico) ocupam espaços guetificados e tempos restritos na economia local dos bens simbólicos, não raro sendo “preservados” justamente por poderem, em uma sociedade de opção modernizadora, serem apresentados “ao do lugar” e, sobretudo”, aos “de for a”, turistas, de preferência, como uma “tradição cultural típica do nosso passado”.
Entre Piracicaba, em São Paulo e Ouro Preto, em Minas Gerais, temos dois exemplos de tendências opostas. De um lado uma cidade interiorana próxima a São Paulo, ontem conhecida como um dos redutos de cultura caipira mais tradicionais do Estado e, hoje, reconhecida como um dos mais importantes polos regionais de modernização. Uma cidade e uma região onde a antiga “cultura caipira” migra da antropologia do quotidiano para a história do passado próximo e tende a ocupar, entre museus e raros dias festivos, momentos e espaços liminares na vida cultural de uma cidade que se abre a universidades de ponta, a uma agricultura de mercado (há canaviais por toda a parte) e por uma industrialização modernizada.
De outro lado Ouro Preto, não menos “universitária” e também francamente industrial, mas que faz ainda e sempre de suas tradições e do peso de uma história passada presentificada na arquitetura e no todo do “ar colonial da cidade” o eixo de referência de sua própria identidade cultural[8].
Uma tendência-vitrine. Pois à falta de um nome melhor, e para não falar explicitamente de uma tendência-turismo (pois na verdade é disto que se trata), optei por este estranho qualificador. Municípios inteiros, cidades ou, no limite, pequenos nichos-naturais concentrados em distritos ou mesmo em áreas rurais e/ou naturais, definem a ênfase de uma opção cultura dirigida mais a um “dar-se a ver” e a ser visitada do que a um tornar-se produtiva ou reservar-se à sua tradicionalidade sem intenções de vitrine ou de mercado.
Em tempos em que o fator-turismo tende a se tornar um forte e persistente elemento de definição de vocações regionais interioranas, vemos por toda a parte a escolha desta opção como uma orientação dos rumos “do lugar” no seu todo ou em alguns de seus cenários histórico/culturais ou propriamente naturais/ambientais. Lugares de vida e de trabalho capazes de colocar na vitrine de sua mostra ambos os elementos, concentram um apelo dirigido às tradições histórico-culturais e naturais-ambientais. Diamantina e Vila Boa de Goiás podem ser bons exemplos. Outras dirigem esta vocação assumida ao eixo história-cultura tradicional, onde se mesclam janelas abertas ao erudito (Cora Coralina e Veiga Valle em Goiás) e igualmente ao popular (poteiras e artesãos do barro e de outros ofícios na mesma Cidade de Goiás). Outras regiões ou outros municípios, em número crescente, abrem-se a tornarem prioritárias as suas alternativas de fruição da natureza, em uma das três vocações em que consigo compreendê-las por agora: a natureza-vivência, a natureza-saúde e a natureza-aventura (esportes radicais e outros mais inteligentes). A este respeito existe considerações muito interessantes e, algumas delas, muito polêmicas. Mas que este seja um assunto para um outro momento.
Finalmente, uma tendência-política. Ora, o fato de ser sugerida aqui esta alternativa de escolha de sentido do destino de uma comunidade do interior do Brasil pode parecer estranha e até mesmo indevida. Mas, ei-la, evidente e, não raro, de uma grande visibilidade.
De uma lado é preciso lembrar municipalidades e até mesmo regiões (como a das cidades do entorno de Porto Alegre, por exemplo) onde o prosseguimento por duas ou mesmo três gestões de governos locais de uma autoproclamada “administração popular” sob a regência de um governo popular, torna esta opção propriamente política a ênfase cultural que subordina as outras e lhes pretende dar um novo sentido.
Em uma outra direção podemos lembrar as várias áreas do interior onde um trabalho militante de movimentos populares acaba por atribuir todo um também novo sentido nas relações de teor sociocultural. A presença maciça de assentamentos e de acampamentos do MST em algumas áreas regionais do Brasil e os conflitos associados às questões de posse e uso da terra, acabam por se converter em uma ênfase cultural. Uma ênfase vivida como uma conquista e um ganho irreversível, por militantes de movimentos populares, e vivida como uma aventura provisória e inconseqüente, do ponto de vista das elites locais.
Uma e outras vezes tomei aqui de passagem a Cidade e o município de Goiás como um exemplo. Retorno a ele para lembrar que, assim como em contextos culturais do interior do Brasil são raras as vocações culturais isoladas e que se bastam a si mesmas por conta própria, e que em tudo e por toda a parte há muito mais misturas, hibridismos, articulações de diferentes e mudanças e inovações, assim também as tendências sugeridas aqui muitas vezes não ocorrem em “estado puro”. Antes, ao contrário, ocorrem muitas vezes combinando pares de tendências-vocações, ou opondo umas às outras. e Vila Boa de Goiás pode ser um bom modelo desta tendência articuladora de tendências.
Goiás entre a Serra Dourada e o Rio Vermelho, Goiás foi uma das poucas “cidades do ouro” goianas durante 100 anos do período colonial. Foi até entrados aos do século passado, a capital do Estado de Goiás. No ano passado a população da cidade saiu às ruas para festejar, entre rojões e os archotes dos “farricocos” da Semana Santa, o haver sido elevada a “Patrimônio Cultural da Humanidade”. Uma vocação de cidade-histórica entre o meio do caminho e os fundos do Planalto Central tem sido desde então muito acentuada. Fazem pelo menos 3 anos que toda a cidade se re-arranja e prepara para o acontecimento, afinal realizado, do “patrimônio”.
Mas desde há pelo menos 28 anos não apenas a cidade e o município de Goiás, mas toda uma região de treze municípios configuram uma das áreas político-culturais de maior presença ativa de movimentos populares rurais, introduzidos alguns, incentivados outros pela longa gestão de D. Tomás Baldoino, o bispo dominicano da Diocese de Goiás. Desde a demorada seqüência de enfrentamentos com a elite conservadora rural (Goiás é um dos berços do clã de latifundiários da família Caiado) e com os emissários estaduais e regionais dos governos militares, até os anos recentes, marcados por uma forte mobilização em torno à ocupação de fazendas por movimentos agrários populares, Goiás viu-se dividida entre a tradição histórica incentivada sobretudo pela elite urbana e rural conservadora e um forte apelo ao movimentos populares rurais. Hoje a cidade é, de longe e de perto, cercada por nada menos do que dezessete assentamentos rurais da Reforma Agrária.
Eis um bom exemplo de um lugar cultural de vocação múltipla, entre conflitos e alianças. Dos quatro tomados aqui como base a uma reflexão classificatória, apenas a tendência à modernização não se realiza em Goiás.
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[1] Warren Dean escreveu há anos um notável estudo sobre a conquista dos “sertões de dentro”, em seu livro Rio Claro (Brasiliense, 1977). Um outro livro recente aborda justamente a conquista e a devastação da Mata Atlântica e os sentidos e usos dados aos vários “sertões” desbravados. Recomendo com ênfase a leitura de seu livro a ferro e fogo – a história e a devastação da mata atlântica brasileira (Companhia das Letras, 2000).
[2] Ver a partilha da vida (Cabral Editora, 1995).
[3] Pereira de Queiroz, Maria Isaura, bairros rurais paulistas, pg. 32.
[4] Também a quantidade de registros e a importância cultural deste tipo de habitante do Interior do País, praticamente presente em todos os estados da Federação, em territórios rurais e pequenas unidades de residência a que genericamente é dado o nome de “quilombo” ainda não foi reconhecida e levada em conta na proporção devida. Todo um modo de vida e toda uma variedade de culturas negras e mestiças organizada em comunidades de valor étnico apenas de alguns anos para cá tomados como objeto de um estudo mais sério e mais consistente. Lembremos que desde a última Constituição Brasileira tais “territórios de negros” são juridicamente reconhecidos e podem se tornar áreas de propriedade comunal em caráter definitivo.
[5] A importância cultural de toda uma variada descendência mestiça, de mulatos e congêneres não tem sido tratada com o valor que merece, sobretudo nos estudos escolares. Tanto no litoral de cidades como Recife e Olinda, Salvador e o Rio de janeiro, quanto em cidades do interior do País, como todas as do ciclo do ouro e do diamante, até mesmo aquilo a que se poderia dar o nome de “cultura erudita” é, antes de mais nada, a obra criadora de mestiços descendentes de negros livres ou (e principalmente) escravos, e senhores brancos. A começar pelo Aleijadinho ou o Padre José Maurício Nunes Garcia e a concluir por praticamente todos os autores do notável ciclo do Barroco Mineiro. E não apenas os artistas músicos, arquitetos, pintores, escultores e poetas. Não devemos esquecer que quase todo o artesanato também erudito que povoa as igrejas, as praças públicas e as casas do Brasil Colonial e para além da Colônia, é também uma criação de mãos e de mentes negras e mestiças. Lembro-me agora de Cora Coralina, a querida poeta goiana. Um dia, na sua cidade natal, Vila Boa de Goiás, na porta de sua casa na beira do Rio Vermelho, ela me apontava as ruas de pedra da cidade, os muros, as calçadas e as igrejas e me dizia: “o que é que você vê aqui que não foi feito pelas mais dos negros e dos mestiços? Eles fizeram tudo, enquanto os brancos mandavam ou se aborreciam. Tudo o que esta cidade tem para ser mostrado como um valor de arte saiu das mãos negras e mestiças dos escravos ou dos artistas e artesãos livres”.
[6] Uma sociologia devotada ao estudo de comunidades no Brasil dos anos 50 e 60 (Donald Pierson, Eduardo Galvão, Emilio Williens, Oracy Nogueira, entre tantos, sucedida por uma sociologia dos bairros rurais paulistas (Nice Leckoc (completar e corrigir), Maria Isaura Pereira de Queiroz, Lia Fukui, por uma sociologia crítica do mundo rural brasileiro (Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Luís Pereira, Maria Nazareth Wanderley, José de Souza Martins e Maria Sylvia de Carvalho Franco) e por uma antropologia do campesinato brasileiro (Otávio Alves Velho, Luís Eduardo Soares, Beatriz Alásia de Herédia, Hugo Lovisolo, Afrânio Garcia Junior, Laís Mourão, entre tantas e tantos, tem dado conta de trazer à cena de nossos diálogos toda a imensa diversidade das comunidades, das culturas e dos modos de vida de segmentos de populações rurais em praticamente todo o Brasil.
[7] Sem muita fidelidade ao relato que um dia há muitos anos me foi feito pelo professor José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, quero sugerir aqui a oposição entre duas cidades vizinhas no interior de São Paulo, onde a tendência cultural predominante é, senão oposta, pelo menos bastante diferente. No município e na cidade-estância de Amparo uma pequena elite rural conservadora nunca permitiu o desenvolvimento de uma vocação turística. A cidade guarda até hoje os ares de sua própria tradicionalidade dentro de uma região fortemente modernizada. Fundada vários anos depois por pessoas “vindas de for a”, em boa medida, Serra Negra parece haver tomado desde cedo a vocação negada em Amparo. Uma cidade-estância quase que integralmente voltada ao turismo de saúde e de ambiente.
[8] A mesma coisa que observei em Ouro Preto e em Diamantina, encontrei também em Campos do Jordão e em Monte Verde, distrito de Camanducaia, em Minas Gerais. Duas cidades de turismo de história e outras duas de turismo de natureza. Tão for a do alcance dos olhos de quem chega de for a, quanto possível, bairros visualmente degradados de periferia ou vilas operárias (Ouro Preto) concentra uma maioria da população produtiva da cidade. Em Monte Verde, pequenina e encantadora estância que em tudo procura assumir ares alpinos e europeus, o mesmo ônibus que primeiro deixa passageiros nas área nobres do lugar segue depois adiante e tem o seu fim-de-linha em uma pequena e pobre “vila operária”.
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